domingo, 27 de junho de 2010

Jakobs


Em tempos de recrudescimento do Direito Penal e na iminência de aprovação do novo CPP, em que o poder negocial da pena será institucionalizado (Inconstitucionalidade à vista?), o cunhado Direito penal do inimigo de
Günther Jakobs tende a enfileirar mais cidadãos sob o crivo estatal, seja encarcerando ou restringindo direitos.
Segue excerto da monografia que apresentei em junho do ano passado, "Bem jurídico-penal à luz da Constituição Federal de 1988", no Cesusc.

Abraço.


O funcionalismo de Jakobs

Expoente da teoria funcionalista sistêmica, inserida na concepção sociológica de bem jurídico, o penalista alemão Günther Jakobs constrói um novo sistema de direito penal. Não obstante as acirradas críticas que recebe da doutrina, fez uma releitura da concepção de bem jurídico.

Paschoal (2003, p. 37) aduz que Francesco Antolisei foi um precursor do funcionalismo, já que em sua obra assevera que não é correta a idéia de que existe uma correlação indissociável entre o crime e a ofensa de um bem. Para Antolisei, nem sempre o crime seria um fato danoso, mas sim um fato nocivo para a sociedade, reputado pelo legislador. De forma profética, aduzia que, com o tempo, o conceito de bem jurídico no Direito Penal perderia importância.

Jakobs fundamenta seus estudos tendo por base a filosofia do direito de Hegel e alguns aspectos da teoria dos sistemas, como a concepção do direito de Niklas Luhmann. Para Luhmann, o direito é uma estrutura facilitada pela orientação social, e a norma, uma generalização de expectativas, de modo que as expectativas sociais se estabilizam através das sanções, tendo a pena a finalidade de manter a vigência da norma como modelo de contato social (CALLEGARI et al, 2005, p. 12-13)

Dentre os adeptos da concepção sociológica de bem jurídico encontram-se Amelung, Jakobs, Otto, Habermas, Hassemer, entre outros. Amelung vê o bem jurídico como critério de nocividade social; a noção de bem jurídico para Jakobs encontra-se na vigência da norma enquanto objeto de tutela; Otto entende por bem jurídico uma determinada relação do indivíduo com algo que sirva para o desenvolvimento de sua personalidade; Habermas propõe critérios para a criação de bem jurídico; Hassemer formula uma doutrina realista do bem jurídico ancorado em diretrizes político-criminais de ordem racional. Segundo ele, as teorias sociológicas podem cumprir função crítica ou sistemática; na primeira, a noção de bem jurídico transcende o sistema, ou seja, se situa além do Direito Penal. A função sistemática, para Hassemer, reduz o bem jurídico a uma criação do legislador, sendo por isso imanente ao sistema (PRADO, 2003, p. 39-41).

Günther Jakobs representa a face mais radical do funcionalismo, posto que renuncia por completo a idéia de bem jurídico penal, recuando a um Direito Penal exclusivamente formal e arbitrário, já que ilimitado (PASCHOAL, 2003, p. 38).

No momento que se entende que a função da pena é manter as estruturas básicas de uma sociedade, o conceito tradicional de bem jurídico sofre uma transformação, de modo que o dano deixa de ser naturalmente perceptível (como uma lesão corporal ou a subtração de um patrimônio); o conceito passa a ser normativo, ou seja, o que vale é a vigência da norma (CALLEGARI et al, 2005, p. 15-16):

Uma teoria positivista com uma dimensão tão “neutra” (funcionalista), ao não definir previamente a forma específica de seu funcionamento nem o sistema social ao qual será útil, não somente pode permitir o arbítrio punitivo, senão que, tal como assinalou com grande propriedade Muñoz Conde, “conduz à substituição do conceito de bem jurídico pelo de ‘funcionalidade do sistema social’, perdendo assim a Ciência do Direito penal o último apoio que fica para a crítica do Direito penal positivo” (GOMES, 2002, p. 84).

Jakobs afirma que um sistema social funcional só existirá se o Direito Penal assegurar a validade fática ou a vigência das normas jurídicas. O direito repressor teria a função de estabilizar a ordem social através da imputação de condutas e o delito significaria oposição à prescrição normativa, ao passo que a sanção restabeleceria a obediência ao Direito (PRADO, 2003, p. 40).

Todas essas orientações funcionalistas amparam que os objetos de tutela penal devem ser entendidos em sua dimensão social, tendo por base a danosidade social, que é um conceito aberto, com noções vagas, carentes de uma instância mediadora capaz de conferir-lhe operatividade e muito criticável; ou seja, o bem jurídico torna-se mais expressão da ratio legis do que autêntico bem tutelado pela lei (GOMES, 2002, p. 84)

Para Delmanto Júnior (2008, p. 463), a idéia sustentada por Jakobs, revela um retrocesso terrível, aproximando-se de um “direito penal do autor”, típico dos regimes totalitários; e o que é pior, o “Direito penal do inimigo” estaria sendo admitido em Estados tradicionalmente democráticos, como os Estados Unidos e Inglaterra, especialmente após os ataques às torres gêmeas do World Trade Center em Nova Iorque.

Francisco Sannini Neto (Disponível em: http://www.lfg.com.br. Acesso em: 29 de fevereiro de 2009), defende que há compatibilidade entre o Direito Penal do Inimigo [criado por Jakobs] e o Estado Democrático de Direito, já que, com a evolução do nível de organização dos criminosos, o Estado não pode permanecer de mãos atadas frente aos que delinquem, em respeito aos direitos humanos. Sustenta, ainda, que há delinquentes que não podem ser regenarados; para estes, que não mais aceitam viver em sociedade, deve-se aplicar um direito penal diferenciado. Revela que seu posicionamento guarda alicerce na Constituição, verbis:

Insta observar que tal entendimento encontra amparo na própria Constituição através dos princípios da iguldade e da proporcionalidade. Ora, tratar um indivíduo que oferece grande perigo ao Estado de maneira diferenciada, nada mais é do que tratar desigualmente os desiguais. Desse modo, é essencial que o Estado se valha de instrumentos como a infiltração de agentes em organizações criminosas e de interceptações telefônicas sempre que as circunstâncias exigirem (SANNINI NETO, Disponível em: http://www.lfg.com.br Acesso em: 29 de fevereiro de 2009).

José Joaquim Gomes Canotilho, citado por Paschoal (2003, p. 39) sustenta que “[...] a funcionalização, mesmo em um Estado que se pretenda democrático de direito, pode ‘conduzir a institutos censuráveis como os de perda ou suspensão dos direitos fundamentais pela sua utilização abusiva’.”

O arbítrio e a neutralidade, sustentado por Jakobs e outros funcionalistas, que suscitam as críticas dos doutrinadores comprometidos com um Direito Penal garantista e democrático. Concretizar um Direito Penal limitado, de forma efetiva, à lesão de bens jurídicos caros à sociedade é o que um Estado democrático de direito deve esforçar-se em encontrar (PASCHOAL, 2003, p. 42-43).

Para Prado (2003, p. 40), a tese de Jakobs esvazia o conteúdo liberal do bem jurídico, dificultando sobremaneira a limitação do direito de punir estatal, cuja função atribuída àquele; “[...] Trata-se de uma construção formalista, vazia de conteúdo, que pode ser incompatível com os postulados do Estado Democrático de Direito.”


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