sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Site da JF/SP

REJEITADA DENÚNCIA SOBRE IMPORTAÇÃO DE SEMENTES DE MACONHA
 São Paulo, 16 de outubro de 2014
A 2ª Vara Federal em Guarulhos/SP rejeitou denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal (MPF), em que se pretendia a condenação por tráfico internacional de drogas de um homem que tentou importar, pela internet, 27 sementes de maconha para consumo próprio. A decisão está amparada em precedentes do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3).
Segundo a denúncia, a Receita Federal encontrou, em fiscalização de rotina junto aos Correios, 27 sementes da planta Cannabis Sativa Linneu (de cujas folhas se produz o entorpecente popularmente conhecido como "maconha") em um envelope postado na cidade de Haia, na Holanda. O destinatário afirmou à Polícia Federal que comprara as sementes pela internet, e que pretendia plantá-las em casa para produzir ele mesmo a droga que utilizava. Diante da importação das sementes de planta destinada à produção de entorpecente, o MPF ofereceu a denúncia por tráfico internacional de drogas.
Ao rejeitar a denúncia, a Justiça Federal considerou que "a quantidade de sementes de Cannabis Sativa Linneu apreendidas (27, equivalentes a 397g) e a absoluta transparência e regularidade da importação (empreendida sem nenhum artifício de ocultação), claramente evidenciam que a intenção do acusado era o plantio para consumo pessoal e não para o tráfico de entorpecentes".
Como os atos meramente preparatórios de crime não são puníveis quando não haja expressa previsão legal (como não há para o caso do crime de cultivo de plantas destinadas à produção de pequena quantidade de droga para consumo próprio, previsto no art. 28, §1º da Lei de Drogas), o juiz entendeu que "a conduta do acusado, descrita na denúncia, não tipifica nenhum dos crimes tratados na Lei de Drogas". 
Contudo, como a maconha e suas sementes são mercadorias proibidas no Brasil, sua importação configura o crime de contrabando. Como destacado na decisão - em citação de precedente do TRF - "A importação de semente de maconha sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar é, sim, crime, ressalvando-se que não se trata de crime de tráfico de drogas, mas sim de contrabando".
Entretanto, a 2ª Vara Federal de Guarulhos entendeu que, tratando-se de crime de contrabando, a ínfima quantidade de sementes importadas e o fato de não ser o acusado contumaz importador ou vendedor das sementes, impunham a aplicação, ao caso, do princípio da insignificância, que afasta o caráter criminoso desta conduta em particular.
Por essa razão, afirmando que a conduta do acusado revestia-se de mínima ofensividade, de nenhuma periculosidade social, sendo reduzido o grau de reprovabilidade e inexpressiva a lesão jurídica provocada, a decisão rejeitou a denúncia apresentada pelo MPF e determinou o arquivamento do caso. (PMR)

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Barril de pólvora - Rebelião em Cascavel PR - FSP

Rebelião no Paraná termina com 5 presos mortos e 7 desaparecidos

Motim em penitenciária de Cascavel teve dois detentos decapitados; o local ficou destruído
Cerca de 800 foram transferidos; segundo a defensoria, os não localizados podem ter morrido ou fugido
DE CURITIBACOLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM CASCAVEL (PR)DE SÃO PAULO
Após 45 horas, acabou na madrugada desta terça (26) a rebelião na Penitenciária Estadual de Cascavel (PR), com 5 mortos --2 decapitados-- e ao menos 25 feridos. Sete são considerados desaparecidos.
Com cerca de mil presos, o presídio é um dos maiores do Paraná, mas não estava superlotado. Foi a pior rebelião no Estado em quatro anos.
Dois agentes penitenciários foram feitos reféns. No domingo, os amotinados jogaram presos do alto do prédio. Três morreram na queda.
Do telhado, a cabeça de um dos decapitados era exibida.
O motim só acabou após negociações para a transferência de presos.
"Foi uma violência incontrolável e preocupante", afirma o diretor do Depen (Departamento Penitenciário do Estado), Cezinando Paredes.
Segundo Juliano Murbach, presidente da OAB em Cascavel, o motim não teve um fato motivador nem reivindicações específicas. "Eram coisas genéricas, como qualidade da comida, atendimento, violência. São reivindicações que escutamos faz tempo."
A penitenciária tem um histórico de agressões. Apenas neste ano, oito sindicâncias a respeito foram abertas.
Alguns rebelados disseram ser do PCC (Primeiro Comando da Capital), facção criminosa paulista, mas nenhum afirmou que a rebelião ocorreu por ordem da quadrilha.
O Depen diz que os fatos estão sendo investigados. O Estado pedirá à Justiça que promova um mutirão para liberar quem tem direito a progressão de pena e estuda um reforço na segurança.
Com o fim da rebelião, 800 dos 1.038 presos foram transferidos a outras penitenciárias. O local ficou destruído.
A Defensoria Pública diz que há sete presos desaparecidos, que podem ter fugido ou morrido. Só se poderá confirmar o que houve após a vistoria, que deve levar dez dias.
O motim expôs problemas presentes em outras unidades do Paraná: a capacidade do presídio foi "inflada" com mais camas sem aumento do espaço. O Depen diz que não houve prejuízo à segurança.

domingo, 17 de agosto de 2014

Juan Pablo Villalobos

 A 'Ilustríssima' publicou texto do escritor mexicano Juan Pablo Villalobos. Foi escrito para comemoração dos 100 anos do Palácio da Paz, em Haia. Excelente!

Prezada dona Justiça,

JUAN PABLO VILLALOBOSTRADUÇÃO SÉRGIO MOLINA
Praças e Tribunais de Justiça do Brasil e muitos outros lugares do mundo --menos minha cidade natal.
Antes de mais nada, dona Justiça, devo confessar que, lá onde nasci, a senhora era figura rara. Não me interprete mal, por favor, não estou insinuando que na minha cidade ou no meu país falte justiça --o que de fato acontece, mas não vamos antecipar as coisas. Eu simplesmente queria começar contando que na minha cidade não se via --e, até onde eu sei, não se vê-- sua figura em locais públicos. Vasculhei minuciosamente minha memória --incluindo as lembranças inventadas-- e juro que não consegui localizar uma escultura, uma pintura ou pelo menos um grafite onde a senhora aparecesse. Estranho, não é? O mais provável é que sua ausência tenha uma explicação sem graça, que se deva a motivos burocráticos, quer dizer, ao fato de a administração da Justiça ser centralizada. Minha cidade não é capital do Estado, não é capital de coisa nenhuma. Ergo: não tem nenhum órgão próprio de Justiça, o que nos condena à ausência do prédio de um tribunal, que teria na entrada e à vista de todos aquela sua figura de olhos vendados, com seu par de pratinhos na mão direita e a espada na esquerda.
Se não me falha a memória --depois de muito puxar por ela, tanto que talvez a misture com a imaginação-- a primeira imagem da senhora que vi na vida foi na televisão. Deve ter sido num filme de advogado ou num desenho de super-heróis. A senhora percebe, dona Justiça? Em nenhum dos casos se trataria de um produto de ficção nacional, os dois são ficções importadas dos Estados Unidos. Volto a lhe pedir que não me interprete mal, não há segundas intenções na minha afirmação --não estou dizendo que a Justiça no meu país seja importada dos Estados Unidos. Só acho curioso uma pessoa que cresceu numa cidadezinha mexicana ter tido o primeiro contato com a senhora Justiça através de uma imagem produzida pela poderosíssima indústria do entretenimento do país vizinho.
A senhora notou, dona Justiça, que num espaço muito breve já lhe pedi duas vezes para não me interpretar mal? Me dá um pouco de vergonha, mas imagino que a senhora já deva estar acostumada, sendo, como é, sujeita a infinitas interpretações.
Desculpe o atrevimento, dona Justiça, mas desde que vendaram seus olhos eu sempre tenho a impressão de que a senhora foi sequestrada. Não precisa que a gente mande alguém para providenciar seu resgate?
Por outro lado, gostaria de lhe sugerir algumas mudanças na sua imagem. Não sei se a senhora costuma ver televisão --imagino que não, a não ser que tire a venda dos olhos depois do expediente--, mas agora são muito comuns uns programas que transformam a aparência das pessoas. No início mostram uma pessoa que faz questão de parecer feia. E no fim do programa essa mesma pessoa aparece linda de morrer. Sei que muita gente acha que isso é uma frivolidade --e é mesmo, quando se trata de seres humanos--, mas acontece que a senhora, dona Justiça, não é um ser humano: é pura imagem. Na minha humilde opinião, a senhora devia encurtar um pouco a saia, ser mais generosa no decote, inclinar o corpo de um jeito mais sugestivo. Numa palavra: ser mais sensual. A senhora pode imaginar? Eu posso: uma dona Justiça que provoque desejo.
E já que quebramos o gelo, gostaria também de falar sobre os pratinhos da balança que a senhora segura na mão direita. Eles me dão angústia. A interpretação mais corrente diz que esses pratinhos representam o equilíbrio entre o verdadeiro e o justo. Certo. Só que eu acho que eles transmitem uma tremenda fragilidade, como se esse equilíbrio, na prática, fosse impossível. É um problema gravíssimo, que põe em risco sua credibilidade e a confiança dos seres humanos! Não sei se a senhora está a par do espírito da nossa época. Deixe eu lhe dizer uma coisa: já não restam muitos idealistas, a maioria deles se bandeou para o time dos pragmáticos. E o que um pragmático pode pensar vendo a senhora de olhos vendados segurando dois pratinhos numa mão e uma pesada espada na outra? "Impossível!", é o que ele vai pensar, que é impossível haver justiça.
Por último, mas nem por isso menos importante, queria lhe falar da espada, símbolo do poder da razão e da justiça. Hoje em dia já não gostamos muito de armas, sabe? Quer dizer, muita gente gosta delas e as usa, mas digamos que nossas sociedades não têm uma boa imagem das armas nem das pessoas que gostam delas e as usam. Sugiro duas alternativas. Se a senhora faz mesmo questão de continuar sendo idealista --coisa que eu aplaudo--, é melhor trocar a espada por um livro ou por uma folha de papel que simbolize nossas leis. Se, ao contrário, a senhora quer convencer os pragmáticos com um elemento dissuasivo --o que também não seria má ideia, dada a situação do mundo--, seria melhor esquecer a espada e comprar logo uma arma de fogo. Uma pistola. Uma escopeta. Melhor ainda! Uma Uzi, um AK-47!
Pode ser que a esta altura, cara dona Justiça, a senhora esteja escandalizada. Se for assim, peço que me desculpe. Minha imaginação foi condicionada pelo fato de não ter crescido perto de uma imagem sua. A senhora provoca em mim uma terrível saudade, a mesma que sentem os amantes separados por milhares de quilômetros. Acredite que o que me move é o mais puro amor por tudo que a senhora representa.
Sempre seu,
Juan Pablo Villalobos

sábado, 16 de agosto de 2014

Damásio na Carta Forense - Diarréia legislativa

LEGISLAÇÃOComo não fazer leis



Um dia, minha mãe contratou uma doméstica que residia numa fazenda. Eu reclamei que a funcionária fazia tudo errado. Ela me respondeu:
– Filho, eu não a posso dispensar. Preciso dela, pois trabalho fora a maior parte do dia. Ela pouco sabe das coisas porque sempre viveu na fazenda. Eu a estou ensinando. Com o tempo, ela vai melhorar.
Nunca esqueci do que minha mãe me disse, arrematando a conversa:
– Coitada, filho, agora, enquanto eu não ensino, ela faz como não sabe...

Pois é. O Congresso Nacional brasileiro faz lei como não sabe. É inacreditável que, tendo que fiscalizar o orçamento e fazer leis, não faz bem nem um nem outro. De uns tempos para cá, talvez uns quinze anos, as leis brasileiras são feitas de qualquer jeito. Que leis? As penais? Não, todas, sejam penais ou extrapenais. Sempre pergunto aos meus professores: Há leis novas? Se a resposta é positiva, lá vem barbaridade! Mais sofrimento para desvendar o que pretenderam dizer.

Na legislação ambiental, já editaram uma lei definindo crime sem pena, pena sem crime e capítulo de crimes sem crimes e sem penas.

Recentemente, publicaram uma causa de aumento de pena sem o mínimo (“até a metade”), permitindo que o juiz aplique o acréscimo de uma dia de prisão.

Mais recentemente ainda, na Lei n. 13.008, de 26 de junho de 2014, alterando o art. 334 do Código Penal, que tratava do contrabando e descaminho, esqueceram-se de que o funcionário público, quando facilita a prática desses crimes, responde pelo delito do art. 318 do estatuto penal e não pelo art. 334.

O princípio da legalidade não existe para o legislador. Há leis incriminadoras superpostas, ninguém sabendo o que vale e o que não vale. Dificilmente dizem o que é revogado. Certa vez, telefonou-me um delegado de polícia indagando quais eram as normas incriminadoras sobre a falsificação de produtos. Fui estudar e verifiquei que havia nada menos do que três artigos diferentes descrevendo o mesmo fato: no Código Penal, na lei crimes contra a economia popular e no Código de Defesa do Consumidor.

Mas o pior está na Lei n. 12.971, de 9 de maio de 2014, a denominada Lei do Racha. Apresenta erros crassos e falta de coerência. Em dezenas de anos estudando a legislação penal, nunca encontrei lei pior que esta. Deve ser, considerando todos os tempos, a pior lei do mundo.

E não foi por falta de aviso. Na discussão do projeto da nova lei, os deputados federais Sandra Rosado e Fabio Trad alertaram o relator, senador Ítalo do Rego, do erro do § 2o do art. 302 do texto. Mas nada foi feito para reparar o erro.

Desconhecendo o que determina o § 2o do art. 8o da Lei Complementar n. 95, de 1998, o beabá da elaboração de leis, o legislador, ao fixar o período da vacatio legis, não seguiu a regra legal, dispondo: esta lei entrará em vigor “no 1o(primeiro) dia do 6o (sexto) mês após a sua publicação”, que se dará no dia 1o de novembro deste ano de 2014. Deveria ter dito: esta lei entrará em vigor no dia 1o de novembro de 2014.

Anotando que a lei nova pretendeu tornar mais graves as punições penais do Código de Trânsito, reduzindo com isso o número de mortes em nossas vias, que superam hoje 40 mil por ano (uma hecatombe), verifica-se que, de acordo com o art. 306, que trata da embriaguez ao volante, dirigir com a capacidade psicomotora alterada conduz a uma pena de detenção, de 6 meses a 3 anos; dirigir com a capacidade psicomotora alterada, resultando morte, infringe o § 2o do art. 302, sujeitando o motorista à pena de detenção, de 2 a 4 anos. Sendo a mesma conduta nos dois casos, a desproporção entre as duas cominações de pena é flagrante.

Analisando a lei nova, verifica-se que há colisão entre o novo § 2o do art. 302 do CT, que trata do homicídio culposo advindo de racha, e o racha com resultado morte (art. 308, § 2o). No crime de homicídio culposo resultante de racha ocorrido em “via”, em que o sujeito não precisa ser o motorista, a pena, diante da lei nova, é de 2 a 4 anos de reclusão; no racha com morte cometido em “via pública”, no qual o sujeito “participa” da corrida ou disputa, a pena é de 5 a 10 anos de reclusão. O mesmo fato com penas diferentes.

O § 2o do art. 302 descreve um crime autônomo ou contém circunstâncias qualificadoras do homicídio culposo? Tratando-se de circunstâncias e não de crime autônomo, deveria referir-se expressamente ao homicídio culposo, como o Código Penal faz nesses casos. Não mencionando expressamente o homicídio culposo, mais parece um delito autônomo.

No homicídio culposo, as causas de aumento de pena do art. 302, § 1o , inserindo-se entre o caput e o § 2o,, não permitem que sejam aplicadas ao fato do próprio § 2o. Assim, só podem incidir sobre o homicídio culposo “simples” (art. 302, caput).

No inciso III do § 1o do art. 302, agrava-se a pena se o sujeito comete omissão de socorro à vítima do “acidente”, diz o tipo. Ora, se a morte foi “acidental” não há nexo de causalidade, excluindo-se o resultado.

caput do art. 302 comina a mesma pena do seu  § 2o!

No art. 308, §§ 1o e 2o, que tratam, respectivamente, do racha com lesão corporal grave e morte, para afastar o dolo direto e o eventual, o legislador determina uma condição: “se as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo”.

Inacreditável! Eu nunca vi um tipo qualificado pelo resultado no qual a figura, expressamente, afastasse o dolo direto e o eventual, só permitindo a adequação no caso de culpa. Ora, se o sujeito agiu com dolo em relação ao resultado, deve responder por outro delito mais grave, e não pelo tipo preterdoloso.

De todo o visto, se alguém, com tantos anos de estudo de leis penais, tem dificuldade em entendê-las, que dizer dos destinatários das normas penais?
Convém que a Lei n. 12.971/2014 seja revogada. Ainda dá tempo.

quinta-feira, 31 de julho de 2014

Conjur - Retrospecto de JB no STF

Joaquim Barbosa será lembrado 
pelo que é, não pelo que fez


O ministro Joaquim Benedito Barbosa que despediu-se do Supremo Tribunal Federal e do Judiciário nesta quinta-feira (31/7), vai deixar saudades, para o bem e para o mal. Barbosa dedicou 41 anos de sua vida ao serviço público e decidiu abandonar o mais honroso posto da magistratura 13 anos antes do prazo estabelecido por lei.
Antes de atravessar os umbrais da mais alta corte do país como ministro, foi funcionário da gráfica do Senado, oficial de chancelaria do Itamaraty, advogado do Serpro, o serviço de informática do governo federal, e procurador do Ministério Público Federal. Durante todo esse período brilhou mais por suas graduações e pós-graduações acadêmicas em cursos na Finlândia, Inglaterra, Estados Unidos, França, Áustria e Alemanha do que por sua atuação nos órgãos públicos.
Os 11 anos que passou no Supremo Tribunal Federal, igualmente, ficaram mais marcados pelos traços de sua personalidade do que pela sua produção jurisdicional. Esta peculiaridade ficou ainda mais realçada quando presidiu a corte, por um ano e sete meses.
O ministro do STF Luis Roberto Barroso, ao fazer a retrospectiva de 2013para esta revista eletrônica Consultor Jurídico, elencou as grandes causas julgadas pela corte no ano em que Barbosa esteve na presidência:
“Neste ano de 2013, o tribunal, entre outras decisões emblemáticas: (i) admitiu os embargos infringentes na AP 470; (ii) deliberou sobre a perda do mandato parlamentar em razão de condenação criminal transitada em julgado; (iii) pronunciou-se sobre o devido processo legal legislativo em matéria de veto, criação de novos partidos e demarcação de terras indígenas; (iv) suspendeu liminarmente a criação de quatro novos tribunais regionais federais; (v) impediu cautelarmente a mudança das regras de repartição dos royalties do petróleo; (vi) iniciou a modulação dos efeitos das normas sobre precatórios, declaradas inconstitucionais; (vii) impôs o compartilhamento entre Estados e Municípios das competências relacionadas ao saneamento básico; (viii) declarou inconstitucional a reintrodução do voto impresso; (ix) considerou válida a introdução de um prazo de decadência para revisão dos benefícios previdenciários; e (x) definiu o alcance restrito das condicionantes impostas na demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol”.
A retrospectiva feita por Barroso pode ser vista como o balanço da atuação de Joaquim Barbosa como presidente do Supremo. O ministro, porém, foi alçado à condição de celebridade não só do mundo jurídico mas também — ou principalmente — das colunas e redes sociais, por sua atuação como relator da Ação Penal 470, mais conhecida como o processo do mensalão. Ação originária do Supremo em função do foro especial de que gozavam alguns poucos réus da causa, o processo era por si de limitada repercussão jurídica, mas de forte impacto político. Joaquim Barbosa soube capitalizar a onda moralizante anticorrupção que envolveu toda a sociedade brasileira no caso e conseguiu um julgamento no chamado “prazo razoável” estipulado pela Constituição e, ainda por cima, obteve a condenação da maioria dos réus — já, a esta altura, amplamente condenada pela mídia e pela opinião pública.  
Além de ter seu ponto de vista quase sempre seguido pela maioria dos colegas durante o julgamento da AP 470, Barbosa ganhou em popularidade e chegou a ser apontado como um possível candidato a presidente da República. Mas encerrou sua participação no processo com duas derrotas que podem ser consideradas pessoais e que podem também ter apressado sua decisão de antecipar a aposentadoria. A primeira delas foi quando os ministros do Supremo, por maioria, admitiram a possibilidade de Embargos Infringentes para os réus da AP 470 condenados por maioria de votos, mas que tiveram pelo menos quatro votos contrários à condenação. A segunda, já em 2014, quando o Supremo rejeitou a tese defendida por ele de que condenados com direito ao regime semiaberto só teriam direito a trabalhar fora do presídio depois de cumprir um sexto da pena.
Quando do julgamento dos primeiros embargos infringentes, em que a corte rejeitou a denúncia de formação de quadrilha contra o ex-ministro José Dirceu e outros seis condenados do processo do mensalão, Joaquim Barbosa, inconformado com a derrota, afirmou que aquela era uma “tarde triste” para o Supremo. “Com argumentos pífios foi reformada, foi jogada por terra, extirpada do mundo jurídico, uma decisão plenária sólida e extremamente bem fundamentada.” A fez um alerta: “Sinto-me autorizado a alertar a nação brasileira que esse é apenas o primeiro passo”.
Primeiro negro a ser presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa nunca se conformou com o fato de ter chegado ao topo da carreira no Judiciário beneficiado por uma espécie de cota racial. Embora preencha todos os requisitos constitucionais para preencher o cargo, muito especialmente o “notório saber jurídico” de que fala a Constituição, é também notório que ao escolhê-lo para ocupar a vaga do constituionalista José Carlos Moreira Alves, o presidente Luis Inácio Lula da Silva tinha a intenção manifesta de colocar um negro no Supremo, da mesma forma que Fernando Henrique fez de Ellen Gracie ministra para contemplar a "cota das mulheres". Só que Joaquim Barbosa sempre considerou esse detalhe um demérito. "Dizer que eu entrei numa cota é uma manifestação racista. Por quê? Porque simplesmente, as pessoas que fazem isso deixam de lado, não olham meu currículo. Aliás, pouca gente olha meu currículo", afirmou em entrevista ao jornalista Roberto d'Ávila, da Globo News.
Além da Ação Penal 470, a passagem de Joaquim Barbosa pelo Supremo será sempre lembrada pela relação conflituosa que manteve com a maioria de seus colegas. Em 2004, Joaquim Barbosa chegou a chamar o ministro Marco Aurélio “para resolver a questão fora do tribunal”. Foi o primeiro de vários confrontos entre ambos. Outro desafeto antigo foi o ministro Gilmar Mendes: "Quando se dirigir a mim, não pense que está falando com seus capangas de Mato Grosso”, apelou Barbosa, referindo-se ao estado natal de Gilmar. Durante o Julgamento da AP 470, as rusgas com o ministro Ricardo Lewandowski, revisor da ação, foram frequentes e as discussões acaloradas quase sempre descambavam para a ofensa pessoal. Uma de suas últimas investidas foi contra o ministro Roberto Barroso. Barbosa levantou-se contra o voto de Barroso pela redução de pena de alguns condenados, acusando-o de “fazer discurso político” e de “contribuir para a impunidade”. 
Desde que assumiu a presidência do Supremo, revelou-se um crítico feroz da instituição que o cargo que ocupava colocou sob seu comando. Em seu discurso de posse fez uma manifestação de desejo que pode ser entendida, por oposição, como um diagnóstico do Juciário: "Gastam-se bilhões de reais anualmente para que tenyhamos um bom funcionamento da máquina judiciária, porém, é importantne que se diga: o Judiciário a que aspiramos é um Judiciário sem firulas, sem floreios, sem rapapés. O que buscamos é um Judiciário célere, efetivo e justo." Falando na ordem direta das coisas emendou: “É preciso ter a honestidade intelectual para reconhecer que há grande déficit de Justiça entre nós. Nem todos os cidadãos são tratados com a mesma consideração quando buscam a Justiça. O que se vê aqui e acolá é o tratamento privilegiado”.
Seu relacionamento com as bases da magistratura foi igualmente tenso. Antes de torpedear a aplicação da Lei que  criou novos tribunais federais, em reunião com os presidentes de associações de magistrados, disse que o projeto tinha sido aprovado de "maneira açodada e sorrateira", e que os novos tribunais estavam sendo instalados em resorts, à beira de alguma praia" e que seriviriam para dar emprego aos advogados.
Em sua última trombada numa sessão plenária do Supremo, quando já tinha anunciado sua aposentadoria precoce, atropelou o advogado Luiz Fernando Pacheco, que da tribuna da corte pedia que o ministro colocasse em votação o pedido de prisão domiciliar para seu cliente, o ex-presidente do PT, José Genoíno. Incomodado com a insistência do advogado, Barbosa mandou desligar o microfone e em seguida ordnou que os seguranças da corte o retirassem, à força, do recinto. Em nota, Barbosa explicou que  o advogado agiu “de modo violento” e fez “ameaças contra o chefe do Poder Judiciário”. 

domingo, 20 de julho de 2014

Morais da Rosa no Conjur

LIMITE PENAL

Duração razoável do processo sem contrapartida é como promessa de amor


As descobertas da neurociência demonstram que a maneira como aprendemos a pensar e a explicar o modo como decidimos depende de um complexo sistema de variáveis. Não se pode mais aceitar, sem maiores contestações, a ilusão do sujeito racional moderno. Tomar decisão exige impasse. Decidir é uma tarefa complexa e o cérebro, assinala Daniel Kahneman, por seus sistemas — S1 (implícito, rápido, direto, automático, emotivo e desprovido de esforço) e S2 (explícito, consciente, demorado, racional, desgastante e lógico) — busca reduzir a complexidade da decisão.
Basta lembrar da primeira vez em que dirigimos um carro. O que era uma atividade do S2 nas primeiras vezes, com o tempo, passa a ser uma atividade realizada pelo piloto automático. E dirigimos sem pensar. Ainda que os sistemas (S1 e S2) trabalhem em sequência, por sermos humanos, não se problematiza muito, justamente porque a resposta pronta está dada. Modificar exige tempo e esforço mental. No campo do processo penal esse modo de pensar leva muitas vezes a erros (vieses), dado que a reflexão não é acionada. Isso porque a atenção é cara e escassa[1].
Daí que podemos entender como a construção do estereótipo acusado (perigoso, criminoso, condenável etc.) faz com que não se dê muita importância às prisões cautelares, tidas como necessárias. Recentes dados do Conselho Nacional de Justiça mostram que já estamos no pódio mundial de presos, na sua boa parte cautelar. A absolvição de pessoas ao final do processo ou mesmo em segundo grau não é raridade. Mas, simplesmente, na lógica dos atores jurídicos, acontece. É uma externalidade negativa do sistema processual penal. Opera-se, no tocante à cautelar, munido do S1, sem esforço, na facilidade retórica da decretação da prisão.
Com Sylvio Lourenço da Silveira Filho escrevi um livro denominado Medidas compensatórias da demora jurisdicional: a efetivação do direito fundamental à duração razoável do processo penal[2], em que mostramos que a dimensão temporal é culturalmente apreendida e que varia conforme a posição subjetiva. As coordenadas fabricam sistemas de pensamento que servem racionalmente para dar sentido e diminuir a complexidade, embora não consigam expressar a dimensão pessoal do impacto do tempo. A partir da noção de perspectiva (espacial) e expectativa (temporal), vinculadas na representação racional moderna, as quais se encontram imbricadas, pode-se apontar as compreensões do tempo.
A sensação do tempo depende de diversos fatores pessoais e, por isso, não compartilhados, podendo-se apontar as variáveis da idade, gênero, profissão, ansiedade, estresse, rotina, atividade realizada, lugar de sua realização, em suma, cenário e contexto da experiência de tempo. Assim é que, para o acusado, o prolongamento do processo pode ser compreendido de maneira diversa dos jogadores processuais (Ministério Público, Defensor, Advogado, Magistrado).
A garantia da Duração Razoável do Processo, aparentemente inserida pela Emenda Constitucional 45, não se trata de novidade, dado que já discutida em diversos âmbitos, especialmente na Europa. Ademais, prevista nos documentos internacionais, embora ignorada pelo senso comum teórico(Warat). Na verdade, prometer-se a duração razoável sem medidas compensatórias é o mesmo que se prometer amor. Para além do Direito (ao amor ou à duração razoável do processo) é preciso estabelecer-se as garantias. Em ambos os casos, todavia, diante da ineficácia dos mecanismos de garantia, muitas vezes o Direito não se efetiva. A luta para que o processo possa acontecer em padrões que reduzam o sofrimento, contudo, varia conforme a posição subjetiva do ator processual.
O sofrimento experimentado pelo acusado ou pela vítima é manifestado desde seu lugar de implicado (interno). Por outro lado, tanto Ministério Público, Magistratura e Defensoria (pública ou privada), normalmente, tratam o processo singular do acusado e da vítima como sendo mais um. Apenas mais um na rotina diária de enfrentamento da avalanche processual, movido, então, pelo S1. Com a criminalização do cotidiano, das relações afetivas e do incremento dos tipos penais, cada vez mais nos arrostamos com o aumento do número de ações penais. O que pode ser um problema de gestão para alguns, externos ao processo, para os internos - acusado e vítima — a questão é de vida ou morte. E o tempo é um paradoxo. Nem muito rápido que impeça a reflexão, nem muito longo que não faça sentido. Nesse contexto, a luta pelo razoável esbarra nas motivações dos sujeitos do mundo da vida e dos sujeitos processuais. Na fusão de horizontes em que o processo é o palco, não raro a angústia autêntica é só dos diretamente envolvidos, os quais possuem a perspectiva interna, principalmente o acusado.
Logo, como apontam André Nicollit e Aury Lopes Jr., dentre outros, há uma diretriz constitucional que se integra ao patrimônio da dignidade da pessoa humana e que está para além da gestão de processos. As vidas que se escondem por detrás dos números precisam ser resgatadas. Daí a pretensão é a de reler o instituto com cuidado (Tania da Silva Pereira), tanto para os envolvidos diretamente como para os demais. E é preciso fazê-lo resgatando a origem, discussões e critérios para o enfrentamento da duração demasiada do processo, estabelecendo-se mecanismos de mensuração e compensação (dentre eles a atenuante genérica do artigo 66 do Código Penal, consoante explicamos no livro com Sylvio Lourenço). Essa é uma forma de mitigar os nefastos efeitos que um processo causa. Até porque a maioria dos acusados ocupa o lugar de Josef K, de Kafka, ou seja, não entende o que se passa, salvo que demora muito.
Nos julgamentos pelo Tribunal do Júri, o paroxismo chega ao ponto de, em muitos casos, o sujeito ser processado, com recebimento da denúncia, instrução e decisão de pronúncia, mas, em plenário, o membro do Ministério Público requerer a absolvição. A absolvição, nesse contexto, não significa direito à indenização, conforme a posição majoritária. Simplesmente se roubou o tempo da vida do sujeito, por aplicação irrefletida do S1.
Precisamos, definitivamente, falar sobre a duração razoável do processo. Isso porque se o acusado inicia a partida processual com a presunção de inocência, a demora no desfecho do processo é uma forma de tormento torturante e deve ser mitigado com medidas paliativas, sob pena de praticarmos a tortura psicológica com a demora processual. Para tanto, precisamos compreender os lugares e nos implicarmos nas posições, especialmente de garantes, para que tudo não passe de uma promessa de amor.

[1] O tema é tratado em: KAHNEMAN, Daniel. Rápido e Devagar: duas formas depensar. Trad. Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. Desenvolvi um capítulo sobre a questão em MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.
[2] MORAIS DA ROSA, Alexandre; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço. Medidas compensatórias da demora jurisdicional: a efetivação do direito fundamental à duração razoável do processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

 é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC.

terça-feira, 10 de junho de 2014

STJ- Cabimento de MS contra decisum que arquiva IP, pedido pela acusação

RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 44.425 - RS (2013/0395188-6)
RELATOR : MINISTRO JORGE MUSSI
RECORRENTE : FELIPE MENEGHELLO MACHADO
ADVOGADO : FELIPE MENEGHELLO MACHADO (EM CAUSA PRÓPRIA)
RECORRIDO : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
RÉU : HÉLIO DA CONCEIÇÃO FERNANDES COSTA
DECISÃO
Trata-se de Recurso Ordinário em Mandado de Segurança interposto por FELIPE MENEGHELLO MACHADO de acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, nos autos do Mandado de Segurança 70056693286, assim ementado (e-STJ fl. 210):

MANDADO DE SEGURANÇA. ESTELIONATO. DECISÃO QUE
DETERMINOU O ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL, A
PEDIDO DO MINISTÉRIO PUBLICO. INEXISTÊNCIA DE DIREITO
LÍQUIDO E CERTO, DO LESADO PELO DELITO, A PERSECUÇÃO
PENAL.
Ainda que sedimentada na jurisprudência a impossibilidade da
aplicação da denominada prescrição pela pena projetada, tendo o
Ministério Público, titular da ação penal, requerido o arquivamento
do inquérito policial, por tal fundamento, e aquiescido o juízo da
origem, inexiste direito líquido e certo do lesado pelo delito em
postular a remessa dos autos ao Procurador-Geral da Justiça.
Prejuízos que devem ser postulados no juízo cível.
DENEGADA A SEGURANÇA.

Em suas razões (fls. 91/123), sustenta o recorrente, em síntese, "que a controvérsia reside na circunstância de tal decisão ter sido proferida em desacordo com o princípio da legalidade, visto que o Magistrado de primeiro grau não respeitou os ditames dos arts. 109 e 110 do Código Penal, que regem a matéria a respeito da prescrição, atuando fora da esfera estabelecida pelo legislador. Portanto, é possível o conhecimento do Mandado de Segurança no âmbito penal, notadamente quando impetrado contra decisão teratológica, que, no caso, determinou o arquivamento de inquérito policial por O motivo diverso do que a ausência de elementos hábeis para desencadear eventual persecução penal em desfavor do indiciado HÉLIO" (e-STJ fl. 225). O Ministério Público Federal opinou pelo provimento do recurso ordinário para que seja determinada a remessa à Procuradoria Geral de Justiça (e-STJ fls. 248/251).

É o relatório.

Acerca do cabimento de mandado de segurança como sucedâneo recursal, a jurisprudência firme desta Corte Superior de Justiça e do Pretório Excelso é no sentido de que a ação mandamental visa a proteção de direito líqüido e certo contra ato abusivo ou ilegal de autoridade pública, não podendo ser utilizada de forma substitutiva, sob pena de se desnaturar a sua essência constitucional. Daí, somente é cabível o excepcional instrumento do writ of mandamus contra ato judicial eivado de ilegalidade, teratologia ou abuso de poder, que decorram ao paciente irreparável lesão ao seu direito líquido e certo. Com efeito, "Segundo orientação do Superior Tribunal de Justiça, em situações teratológicas, abusivas, que possam gerar dano irreparável, o recurso previsto não tenha ou não possa obter efeito suspensivo, admite-se que a parte se utilize do mandado de segurança contra ato judicial (AgRg no MS 18.995/DF, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, CORTE ESPECIAL, julgado em 16/09/2013, DJe 23/09/2013).

Por outro lado, "Da decisão judicial que, acolhendo manifestação do
Ministério Público, ordena o arquivamento de inquérito policial, não cabe recurso.
(Precedentes)" (RMS 24.328/PR, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA,
julgado em 13/12/2007, DJe 10/03/2008).

Assim, a prescrição da pretensão punitiva, utilizando como base de
cálculo suposta pena a ser concretizada numa possível e futura sentença condenatória,
também conhecida por virtual, antecipada ou hipotética, não encontra amparo em nosso
ordenamento jurídico, o qual prevê apenas que a referida causa extintiva regula-se pelo
máximo da pena abstratamente cominada ou, ainda, pela sanção concretamente
aplicada.
Nesta Corte Superior de Justiça, aliás, a matéria já se encontra inclusive
sumulada, valendo transcrever, por oportuno, o teor do enunciado 438, verbis:
"É inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição
da pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética,
independentemente da existência ou sorte do processo
penal."

Nesse sentido:
PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO
ESPECIAL. PRESCRIÇÃO EM PERSPECTIVA. IMPOSSIBILIDADE.
SÚMULA 438/STJ.
I. É inadmissível o reconhecimento de prescrição antecipada da
pena em perspectiva, por absoluta ausência de previsão legal.
Incidência da Súmula 438/STJ.
II. Agravo regimental improvido.
(AgRg no AREsp 23.516/PI, Rel. Ministra REGINA HELENA
COSTA, QUINTA TURMA, julgado em 24/09/2013, DJe
02/10/2013)


Logo, na hipótese vertente, arquivado o inquérito policial (e-STJ fl. 59) a
pedido do representante do Ministério Público (e-STJ fls. 55/58), com base na
perspectiva virtual e, inexistindo recurso contra referida decisão, à vítima restava
somente o mandamus para proteção de seu direito líquido e certo ao devido processo
legal.

Nesse sentido "Sendo irrecorrível a decisão que, segundo a jurisprudência
consolidada dos Tribunais Superiores, é manifestamente ilegal, por não albergar o
nosso ordenamento jurídico a prescrição em perspectiva, restaria à vítima apenas a
possibilidade da impetração de mandado de segurança" (AgRg no RMS 33270/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 06/08/2013, DJe 13/08/2013)


Ante o exposto, com fundamento no caput do art. 557 do Código de
Processo Civil, dou provimento ao recurso ordinário para, afastando o fundamento da
prescrição em perspectiva, determinar o retorno dos autos ao juízo de primeira
instância para, nos termos do art. 28 do CPP, remeter à Procuradoria Geral de Justiça.
Publique-se e intimem-se.
Brasília (DF), 21 de maio de 2014.
Ministro JORGE MUSSI


Relator

quinta-feira, 24 de abril de 2014

STJ - Informativo 537/2014

Quinta Turma
DIREITO PENAL. RESSARCIMENTO DE DANO DECORRENTE DE EMISSÃO DE CHEQUE FURTADO.
Não configura óbice ao prosseguimento da ação penal – mas sim causa de diminuição de pena (art. 16 do CP) – o ressarcimento integral e voluntário, antes do recebimento da denúncia, do dano decorrente de estelionato praticado mediante a emissão de cheque furtado sem provisão de fundos. De fato, a conduta do agente que emite cheque que chegou ilicitamente ao seu poder configura o ilícito previsto no caput do art. 171 do CP, e não em seu § 2º, VI. Assim, tipificada a conduta como estelionato na sua forma fundamental, o fato de ter o paciente ressarcido o prejuízo à vítima antes do recebimento da denúncia não impede a ação penal, não havendo falar, pois, em incidência do disposto na Súmula 554 do STF, que se restringe ao estelionato na modalidade de emissão de cheques sem suficiente provisão de fundos, prevista no art. 171, § 2.º, VI, do CP. A propósito, se no curso da ação penal ficar devidamente comprovado o ressarcimento integral do dano à vítima antes do recebimento da peça de acusação, esse fato pode servir como causa de diminuição de pena, nos termos do previsto no art. 16 do CP. Precedentes citados: RHC 29.970-SP, Quinta Turma, DJe 3/2/2014; e HC 61.928-SP, Quinta Turma, DJ 19/11/2007. HC 280.089-SP, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 18/2/2014.
DIREITO PROCESSUAL PENAL. NULIDADE NO JULGAMENTO DO TRIBUNAL DO JÚRI.
É nulo o julgamento no Tribunal do Júri que tenha ensejado condenação quando a acusação tiver apresentado, durante os debates na sessão plenária, documento estranho aos autos que indicaria que uma testemunha havia sido ameaçada pelo réu, e a defesa tiver se insurgido contra essa atitude fazendo consignar o fato em ata. De acordo com a norma contida na antiga redação do art. 475 do CPP, atualmente disciplinada no art. 479, é defeso às partes a leitura em plenário de documento que não tenha sido juntado aos autos com a antecedência mínima de três dias. Trata-se de norma que tutela a efetividade do contraditório, que é um dos pilares do devido processo legal, sendo certo que a sua previsão legal seria até mesmo prescindível, já que o direito das partes de conhecer previamente as provas que serão submetidas à valoração da autoridade competente é ínsito ao Estado Democrático de Direito. De fato, existem entendimentos doutrinários e jurisprudenciais no sentido de que eventual inobservância à norma em comento caracterizaria nulidade de natureza relativa, a ensejar arguição oportuna e comprovação do prejuízo suportado. Entretanto, não há como negar que a atuação de qualquer das partes em desconformidade com essa norma importa na ruptura da isonomia probatória, a qual deve ser observada em toda e qualquer demanda judicializada, ainda mais no âmbito de uma ação penal – cuja resposta estatal, na maioria das vezes, volta-se contra um dos bens jurídicos mais preciosos do ser humano – e, principalmente, no procedimento dos crimes dolosos contra a vida, em que o juízo condenatório ou absolutório é proferido por juízes leigos, dos quais não se exige motivação. Com efeito, o legislador ordinário estabeleceu, ao regulamentar o referido procedimento, uma peculiar forma de julgamento, já que os jurados que compõem o Conselho de Sentença são chamados a responderem de forma afirmativa ou negativa a questionamentos elaborados pelo juiz presidente, razão pela qual os seus veredictos são desprovidos da fundamentação que ordinariamente se exige das decisões judiciais. Assim, toda a ritualística que envolve o julgamento dos delitos dolosos contra a vida tem por finalidade garantir que os jurados formem o seu convencimento apenas com base nos fatos postos em julgamento e nas provas que validamente forem apresentadas em plenário. No caso de ser constatada quebra dessa isonomia probatória, como na hipótese em análise, não há como assegurar que o veredicto exarado pelo Conselho de Sentença tenha sido validamente formado, diante da absoluta impossibilidade de se aferir o grau de influência da indevida leitura de documento não juntado aos autos oportunamente, justamente porque aos jurados não se impõe o dever de fundamentar. Ademais, ainda que se empreste a essa nulidade a natureza relativa, na hipótese em que a defesa do acusado tenha consignado a sua irresignação em ata, logo após o acusador ter utilizado documento não acostado aos autos oportunamente, não há falar em preclusão do tema. Sobrevindo, então, um juízo condenatório, configurado também se encontra o prejuízo para quem suportou a utilização indevida do documento, já que não se vislumbra qualquer outra forma de comprovação do referido requisito das nulidades relativas. HC 225.478-AP, Rel. Min. Laurita Vaz e Rel. para acórdão Min. Jorge Mussi, julgado em 20/2/2014.
Sexta Turma
DIREITO PENAL. HOMICÍDIO CULPOSO COMETIDO NO EXERCÍCIO DE ATIVIDADE DE TRANSPORTE DE PASSAGEIROS.
Para a incidência da causa de aumento de pena prevista no art. 302, parágrafo único, IV, do CTB, é irrelevante que o agente esteja transportando passageiros no momento do homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor. Isso porque, conforme precedente do STJ, é suficiente que o agente, no exercício de sua profissão ou atividade, esteja conduzindo veículo de transporte de passageiros. Precedente citado: REsp 1.358.214-RS, Quinta Turma, DJe 15/4/2013. AgRg no REsp 1.255.562-RS, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 4/2/2014.
DIREITO PENAL. ILEGALIDADE NA MANUTENÇÃO DE INIMPUTÁVEL EM ESTABELECIMENTO PRISIONAL.
É ilegal a manutenção da prisão de acusado que vem a receber medida de segurança de internação ao final do processo, ainda que se alegue ausência de vagas em estabelecimentos hospitalares adequados à realização do tratamento. Com efeito, o inimputável não pode, em nenhuma hipótese, ser responsabilizado pela falta de manutenção de estabelecimentos adequados ao cumprimento da medida de segurança, por ser essa responsabilidade do Estado. Precedentes citados: HC 81.959-MG, Sexta Turma, DJ 25/2/2008; RHC 13.346-SP, Quinta Turma, DJ 3/2/2003; e HC 22.916-MG, Quinta Turma, DJ 18/11/2002.RHC 38.499-SP, Rel. Min. Maria Thereza De Assis Moura, julgado em 11/3/2014.
DIREITO PROCESSUAL PENAL. INTIMAÇÃO POR EDITAL NO PROCEDIMENTO DO JÚRI.
No procedimento relativo aos processos de competência do Tribunal do Júri, não é admitido que a intimação da decisão de pronúncia seja realizada por edital quando o processo houver transcorrido desde o início à revelia do réu que também fora citado por edital. Efetivamente, o art. 420, parágrafo único, do CPP – cujo teor autoriza a utilização de edital para intimação da pronúncia do acusado solto que não for encontrado – é norma de natureza processual, razão pela qual deve ser aplicado imediatamente aos processos em curso. No entanto, excepciona-se a hipótese de ter havido prosseguimento do feito à revelia do réu, citado por edital, em caso de crime cometido antes da entrada em vigor da Lei 9.271/1996, que alterou a redação do art. 366 do CPP. A referida exceção se dá porque, em se tratando de crime cometido antes da nova redação conferida ao art. 366 do CPP, o curso do feito não foi suspenso em razão da revelia do réu citado por edital. Dessa forma, caso se admitisse a intimação por edital da decisão de pronúncia, haveria a submissão do réu a julgamento pelo Tribunal do Júri sem que houvesse certeza da sua ciência quanto à acusação, o que ofende as garantias do contraditório e do plenitude de defesa. Precedentes citados: HC 228.603-PR, Quinta Turma, DJe 17/9/2013; e REsp 1.236.707-RS, Sexta Turma, DJe 30/9/2013. HC 226.285-MT, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 20/2/2014.
DIREITO PROCESSUAL PENAL. INTIMAÇÃO POR EDITAL NO PROCEDIMENTO DO JÚRI.
No procedimento relativo aos processos de competência do Tribunal do Júri, o acusado solto que, antes da Lei 11.689/2008, tenha sido intimado pessoalmente da decisão de pronúncia pode, após a vigência da referida Lei, ser intimado para a sessão plenária por meio de edital caso não seja encontrado e, se não comparecer, poderá ser julgado à revelia. Os arts. 413 e 414 do CPP, em sua redação original, impunham a suspensão do processo enquanto não operada a intimação pessoal do acusado acerca da decisão de pronúncia, embora o prazo prescricional continuasse a fluir. Com a modificação operada pela Lei 11.689/2008 no art. 420 do CPP, entende-se que foi superada a crise de instância a que submetido os feitos anteriores à referida Lei, ao restabelecer-se a marcha processual de ações penais suspensas. Cuidando-se de norma puramente processual, entende-se que o art. 420 do CPP, com a redação conferida pela Lei 11.689/2008, tem aplicabilidade imediata, tendo em vista a necessidade de densificação da isonomia, por meio do critério tempus regit actum. O mesmo entendimento é aplicável no que diz respeito à intimação ficta para a sessão plenária. Com efeito, o art. 431 do CPP assim dispõe: "Estando o processo em ordem, o juiz presidente mandará intimar as partes, o ofendido, se for possível, as testemunhas e os peritos, quando houver requerimento, para a sessão de instrução e julgamento, observando, no que couber, o disposto no art. 420 deste Código." No preceito normativo processual, houve expressa remissão ao artigo 420 do CPP, a possibilitar a intimação por edital do réu acerca da data da sessão plenária do júri. O art. 457 do CPP, por sua vez, admite que o julgamento ocorra sem a presença do réu, ao dispor que o julgamento “não será adiado pelo não comparecimento do acusado solto, do assistente ou do advogado do querelante, que tiver sido regularmente intimado". Desse modo, em hipóteses como a em análise, não há vício de procedimento, eis que o acusado está ciente do processo que tramita em seu desfavor, optando por não comparecer em plenário. Precedentes citados:  HC 251.000-SP, Quinta Turma, DJe 3/2/2014; HC 215.956-SC, Sexta Turma, DJe 16/10/2012; e HC 132.087-RJ, Quinta Turma, DJe 26/10/2009. HC 210.524-RJ, Rel. Min. Maria Thereza De Assis Moura, julgado em 11/3/2014.
DIREITO PROCESSUAL PENAL. LIMITES DA COMPETÊNCIA DO JUIZ DA PRONÚNCIA.
O juiz na pronúncia não pode decotar a qualificadora relativa ao “meio cruel” (art. 121, § 2º, III, do CP) quando o homicídio houver sido praticado mediante efetiva reiteração de golpes em região vital da vítima. O STJ possui entendimento consolidado no sentido de que o decote de qualificadoras por ocasião da decisão de pronúncia só está autorizado quando forem manifestamente improcedentes, isto é, quando completamente destituídas de amparo nos elementos cognitivos dos autos. Nesse contexto, a reiteração de golpes na vítima, ao menos em princípio e para fins de pronúncia, é circunstância indiciária do “meio cruel”, previsto no art. 121, § 2º, III, do CP, que consiste em meio no qual o agente, ao praticar o delito, provoca um maior sofrimento à vítima. Não se trata, pois, a reiteração de golpes na vítima de qualificadora manifestamente improcedente que autorize a excepcional exclusão pelo juiz da pronúncia, sob pena de usurpação da competência constitucionalmente atribuída ao Tribunal do Júri. Precedente citado: HC 224.773-DF, Quinta Turma, DJe 6/6/2013. REsp 1.241.987-PR, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 6/2/2014.

sábado, 15 de março de 2014

Do blog "justiça e mais' "Juiz vai a julgamento no Rio de Janeiro por pendurar quadro que denuncia genocídio contra os pobres

segunda-feira, 10 de março de 2014

Juiz vai a julgamento no Rio de Janeiro por pendurar quadro que denuncia genocídio contra os pobres

(reportagem publicada no site Viomundo, em 9.03.2014)


por Conceição Lemes
Nesta segunda-feira, às 13 horas, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) realiza um julgamento inusitado.
Os 25 membros do Órgão Especial do TJRJ avaliam representação judicial contra o juiz João Batista Damasceno.
“Crime”: ter pendurado em seu gabinete no dia 25 de agosto de 2013 o quadro Por uma cultura de paz, de Carlos Latuff.
“Trata-se de uma representação por suposto descumprimento de dever funcional”, explica o juiz João Batista Damasceno. “O corregedor diz que a obra de arte tem uma crítica à polícia e que pendurar tal quadro num gabinete é crítica a outra instituição e que tal comportamento é indevido a um juiz.”
O corregedor geral de Justiça é o desembargador Valmir de Oliveira Silva.
O corregedor age de ofício, ou seja, por imperativo legal em função do seu cargo.
No caso, a origem da representação foi um ofício do deputado estadual Flávio Bolsonaro, do PP. Houve, ainda, reação da “bancada da bala” e de algumas associações de policiais.
“A presidenta do tribunal é filha de policial e isso também pesou na decisão”, acrescenta o juiz Damasceno. “Há certa pessoalidade na questão, além do componente ideológico.”
Cronologia da punição:
2 de setembro – A presidenta do TJRJ, Leila Mariano, leu em sessão do tribunal o ofício recebido do deputado estadual Flávio Bolsonaro. Ela fez constar da ata que o tribunal mandara tirar o quadro.
3 de setembro – O juiz Damasceno recebeu comunicação para retirar o quadro. Mas  como soube antes que o tribunal determinaria a retirada, ele antecipou. Ao tomar conhecimento do caso, o desembargador Siro Darlan de Oliveira, da sétima Câmara do TJ-RJ, decidiu dar “asilo artístico” ao quadro.
“Ofereci ‘asilo artístico’ ao quadro perseguido em solidariedade a um magistrado perseguido por ter a coragem de defender seu ponto de vista em defesa da moralidade e da causa pública”, justifica o desembargador. “Além disso, é um direito constitucional, o da livre manifestação do pensamento, que não lhe pode ser negado.”
9 de setembro – O tribunal mandou retirar o quadro que estava na parede do gabinete de Siro Darlan.
12 de setembro – O desembargador Siro Darlan foi notificado pelo corregedor geral da Justiça de que o Órgão Especial do TJRJ abrira uma sindicância para apurar a sua conduta, considerada “afrontosa à decisão colegiada”.
“Já houve um arremedo de representação, que, como não tive mais notícia, estou entendendo como uma desistência”, diz Siro Darlan.
O quadro de Latuff, juntamente com outras obras de arte doadas por outros artistas, foi levado a leilão. Com dinheiro arrecado, foi adquirida uma casa para a família do pedreiro Amarildo, desaparecido após sequestro, tortura e morte nas mãos da polícia.
O quadro foi arrematado pelo desembargadora Kenarik Boujikian, presidenta da Associação Juízes para Democracia (AJD), que o pendurou em seu gabinete no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).

João Batista Damasceno,Siro Darlan e Kenarik Boujikian ousaram pendurar o quadro no gabinete; os três são da Associação Juízes para a Democracia (AJD)  
“O julgamento do juiz Damasceno é importante e paradigmático, porque a ação em si é um desrespeito à independência dos magistrados de se colocarem e expressarem opiniões como qualquer cidadão”, salienta Siro Darlan. “Esse é um direito constitucionalmente assegurado a todos os cidadãos. Não é um direito personalíssimo, mas um direito fundamental da sociedade.”
“Todos que foram cobrados dessa forma ao longo da história da civilização tiveram como algozes as forças reacionárias e conservadoras”, prossegue Darlan. “Esse julgamento também descortina uma prática nada republicana que vige nos tribunais de excluir os que incomodam e contestam essas práticas excludentes. O tribunal serve a uma minoria que o comanda de acordo com suas conveniências e interesses. Já vi magistrados sendo perseguidos por ousarem ler fora dessa cartilha conservadora e conivente.”
Segue a íntegra da nossa entrevista com o juiz João Batista Damasceno.
Viomundo — O que o levou a colocar o quadro no seu gabinete?
João Batista Damasceno — O quadro retrata a violência do Estado contra os excluídos. Os autos de resistência são formas de mascarar os assassinatos cometidos pelo aparelho repressivo do Estado nas periferias, vitimando principalmente jovens pobres e negros.
A colocação do quadro é uma forma de denunciar o genocídio que se pratica contra os pobres.
Ao lado dos autos de resistência, temos os desaparecimentos, como o de Amarildo. Em 2012 foram 5.900 no Estado do Rio de Janeiro. Nem todos os desaparecimentos são obras de grupos paramilitares ou grupos de extermínio que atuam marginalmente ao Estado. Há casos de doentes mentais ou pessoas em crises conjugais que desaparecem. Mas a maioria dos casos é de pessoas mortas e desaparecidas.
O desaparecimento de uma pessoa é uma perversidade com ela e com sua família, pois lhe retira a possibilidade do ritual do sepultamento, indispensável ao desenlace dos vínculos havidos ao longo da vida.
Viomundo — Como ficou sabendo que estava sendo alvo de processo por causa do quadro?
João Batista Damasceno — Fui intimado pelo corregedor a prestar informações sobre a colocação do quadro. Em seguida, recebi cópia da representação que me intimava para apresentação de defesa prévia.
A Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj) orientou-me a responder por meio do advogado por ela constituído. O advogado foi intimado para a sessão do Órgão Especial do tribunal marcada para esta segunda-feira, dia 10 de março.
Viomundo – O que será feito durante essa sessão?
João Batista Damasceno —  A representação feita pelo corregedor será apreciada pelos 25 membros do Órgão Especial do TJRJ. Ela pode ser recebida ou rejeitada. Se recebida, começa o processo disciplinar. Não fui intimado para a sessão, mas meu advogado foi.
Viomundo — Que tipo de ação foi aberta contra o senhor?
João Batista Damasceno — Trata-se de uma representação por suposto descumprimento de dever funcional. O corregedor diz que a obra de arte tem uma crítica à polícia e que pendurar tal quadro num gabinete é crítica a outra instituição e que tal comportamento é indevido a um juiz.
Ele fala na representação em crime de “vilipêndio a objeto de culto”, tipificado no artigo 208 do Código Penal. Mas não há ação penal. Isso é apenas retórica. Este foi o fundamento com o qual mandou apreender o quadro no gabinete do desembargador Siro Darlan.
O tribunal não pode agir de ofício em caso de crime. Ao Ministério Público é que caberia tal busca e apreensão, por meio de ação própria, se estivesse diante de efetivo crime.
De qualquer modo, o tratamento da questão demonstra como alguns tribunais se colocam ao lado das truculências do Estado e usa retórica para admoestar quem critica o Estado.
Num Estado Policial, o poder não é apenas da polícia. Num Estado Policial, todas as agências atuam com a lógica da polícia.
No caso em questão, está evidenciada anomalia no procedimento do tribunal. A representação é feita tão somente contra um juiz de primeiro grau, ainda que o quadro tenha permanecido por mais tempo no gabinete de um desembargador.
Mas, o desembargador – que se fosse o caso – deveria ser igualmente representado, não é destinatário da ação do corregedor.
Viomundo — Foi uma decisão do próprio tribunal ou a pedido de terceiros?
João Batista Damasceno — O tribunal age de ofício. No caso, é uma representação do corregedor. Mas ele o fez a partir da reação de alguns setores ligados ao aparado repressivo do Estado. O ofício do Deputado Flávio Bolsonaro, a reação da “bancada da bala”, a reação de algumas associações de policiais…
A presidenta do tribunal é filha de policial e isso também pesou na decisão. Há certa pessoalidade na questão, além do componente ideológico.
Mas entidades e pessoas ligadas à justificação da truculência do Estado endossaram a atuação do tribunal.
Viomundo – Que decisão o senhor imagina saia nesta segunda-feira?
João Batista Damasceno — Não creio no recebimento da representação. Agora, se acolhida, ela poderá ser ao final arquivada ou posso sofrer uma sanção administrativa, de natureza disciplinar. Tenho 20 anos de magistratura e em minha ficha funcional não consta nenhuma sanção. Ao contrário, tenho dois elogios.
Viomundo — O fato de ter doado dinheiro para a ceia dos sem-teto na Cinelândia, no Natal do ano passado, vai influenciar no julgamento?
João Batista Damasceno  – Não sou vítima da atuação dos que estão em outro espectro ideológico no seio da magistratura e da sociedade.
O que estamos vivenciando é um embate próprio dos interesses inconciliáveis.
Mas, claro, que minha posição ideológica, notadamente, pela afirmação do Estado de Direito neste momento de ascensão do Estado Policial e a participação de uma entidade que pugna pela difusão da cultura jurídica democrática, influencia o posicionamento daqueles que se alinham com posições jurídico-político-ideológicas adversas.
Viomundo – Como qualifica essa ação contra o senhor?
João Batista Damasceno — A censura a obra de arte é inconstitucional. Igualmente inconstitucional é a ameaça de processo disciplinar, pois viola o direito à livre manifestação do pensamento.
******
Carta de repúdio enviada pelo desembargador  Siro Darlan aos colegas por ocasião da ação do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro contra o juiz João Batista Damasceno
Colegas Magistrados.
Em nome de Deus muitas guerras “santas” fraticidas foram declaradas e em nome da Justiça tenebrosas injustiças são praticadas. Assim como Deus é a Luz do Mundo, a Justiça deve ser o farol de segurança do respeito ás regras de convivência humana traçadas pela Constituição que foi escrita para a sociedade como garantia do equilíbrio entre os desiguais e o respeito ás diferenças.
Precisamos estar atentos para os movimentos que estão se proliferando de perseguição a determinados magistrados, colegas de primeiro grau, em razão de seus posicionamentos judiciais, pessoais, filosóficos ou doutrinários.
A independência do juiz é de natureza jurídico-administrativa, fazendo parte da relação do juiz com o Estado. Assim como as demaisgarantias da magistratura, está inserida num amplo contexto, que corresponde à independência do Poder Judiciário e à imparcialidade do magistrado.
“Da dignidade do juiz depende a dignidade do direito. O direito valerá, em um país e em um momento histórico determinado, o que valham os juízes como homens. No dia em que os juízes têm medo, nenhum cidadão pode dormir tranquilo” (Eduardo Couture).
A independência do juiz, primeiro, é uma garantia do próprio Estado de Direito, pelo qual se atribuiu ao Poder Judiciário a atribuição de dizer o direito, direito este que será fixado por normas jurídicas elaboradas pelo Poder Legislativo, com inserção, ao longo dos anos, de valores sociais e humanos, incorporados ao direito pela noção de princípios jurídicos.
A independência do juiz, para dizer o direito, é estabelecida pela própria ordem jurídica como forma de garantir ao cidadão que o Estado de Direito será respeitado e usado como defesa contra todo o tipo de usurpação. Neste sentido, a independência do juiz é, igualmente, garante do regime democrático.
Importante, ademais, destacar que a questão da independência dos juízes tratou-se mesmo de uma conquista da cidadania, pois nem sempre foi a independência um atributo do ato de julgar.
Dalmo de Abreu Dallari, assim se pronuncia a respeito:
“Essa ideia de independência da magistratura não é muito antiga. Há quem pense que isso acompanhou sempre a própria ideia de magistratura – eu ouvi uma vez alguma coisa assim no Tribunal de Justiça de São Paulo – o que é um grande equívoco. São fatos, fenômenos novos, situações novas, que estão chegando há pouco e que provocam crise, provocam conflitos.
Paralelamente a isso verifica-se, nesse ambiente de mudanças o crescimento da ideia de direitos humanos. Há um aspecto da história da história da magistratura que eu vou mencionar quase que entre parênteses, é uma coisa que corre paralelamente à história europeia, mas fica lá num plano isolado que é o aparecimento de uma magistratura independente, de fato independente nos Estados Unidos.
É oportuno lembrar a atitude política dos Estados Unidos durante  todo século XIX, ficando numa posição de isolamento do resto do mundo, sem participar de guerras ou alianças. Também o seu direito tinha outro fundamento, pois era basicamente o direito costumeiro e por isso não serefletiu nos direitos de estilo e tradição romanística, mas é muitointeressante esse aspecto da história dos Estados Unidos.”
Ora, não há dúvida que essa garantia vem sendo solapada através de campanhas de desvalorização dos profissionais da justiça, através da mídia comprometida e de políticos interessados na impunidade e no enfraquecimento do judiciário. Essa campanha acaba gerando juízes medrosos, covardes e acanhados, com medo de um necessário ativismo judicial, onde através de decisões corajosas e independentes reflitam a verdadeira independência do Poder Judiciário e não uma subserviência aos mais poderosos midiática e economicamente.
Mas quando essa pressão ocorre dentro de nossa Casa de Justiça, estamos dando um tiro no pé e armando nossos adversários com argumentos  insuperáveis. Desse modo precisamos acompanhar de perto e com interesse na proteção da magistratura como um todo. As ações, sobretudo as de iniciativa da Corregedoria doTribunal de Justiça que vem tentando amedrontar e calar juízes quedemonstram com mais efervescência essa independência.
Magistrados estão sendo chamados a prestar esclarecimentos por suas decisões judiciais, manifestações acadêmicas e outras que não se enquadram no modelo pré-determinado e isso é inaceitável e  uma verdadeira agressão que precisa cessar em respeito a toda magistratura fluminense.
Desmandos administrativos, comportamentos não éticos ou condutas negligentes com nossos deveres constitucionais e funcionais, devem sempre ser corrigidas, seja no âmbito do Controle Interno, seja através do próprio Controle Social; mas a perseguição sub-reptícia, a ameaça de procedimentos punitivos ou a própria instauração de processos tão somente  em razão de decisões proferidas no âmbito do processo judicial ou em razão de opiniões acadêmicas, refogem inteiramente dos próprios princípios republicanos que fundamentam a Constituição da República.
A independência do juiz é condição basilar para a garantia dos direitos fundamentais e não podemos deixar que esta ou aquela administração se valha de seu mandato temporário e fugaz para solapar  através  de um terrorismo administrativa ospróprios pilares do Estado Democrático de Direito.
Portanto, nobre Colega, a vigilância é permanente e cabe a nos esta vigilância.
Siro Darlan