quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Fábio Konder Comparato

E agora, Brasil?
Fábio Konder Comparato



A Corte Interamericana de Direitos Humanos acaba de decidir que o Brasil descumpriu duas vezes a Convenção Americana de Direitos Humanos. Em primeiro lugar, por não haver processado e julgado os autores dos crimes de homicídio e ocultação de cadáver de mais 60 pessoas, na chamada Guerrilha do Araguaia. Em segundo lugar, pelo fato de o nosso Supremo Tribunal Federal haver interpretado a lei de anistia de 1979 como tendo apagado os crimes de homicídio, tortura e estupro de oponentes políticos, a maior parte deles quando já presos pelas autoridades policiais e militares.





O Estado brasileiro foi, em conseqüência, condenado a indenizar os familiares dos mortos e desaparecidos.





Além dessa condenação jurídica explícita, porém, o acórdão da Corte Interamericana de Direitos Humanos contém uma condenação moral implícita.





Com efeito, responsáveis morais por essa condenação judicial, ignominiosa para o país, foram os grupos oligárquicos que dominam a vida nacional, notadamente os empresários que apoiaram o golpe de Estado de 1964 e financiaram a articulação do sistema repressivo durante duas décadas. Foram também eles que, controlando os grandes veículos de imprensa, rádio e televisão do país, manifestaram-se a favor da anistia aos assassinos, torturadores e estupradores do regime militar. O próprio autor destas linhas, quando ousou criticar um editorial da Folha de S.Paulo, por haver afirmado que a nossa ditadura fora uma “ditabranda”, foi impunemente qualificado de “cínico e mentiroso” pelo diretor de redação do jornal.





Mas a condenação moral do veredicto pronunciado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos atingiu também, e lamentavelmente, o atual governo federal, a começar pelo seu chefe, o presidente da República.





Explico-me. A Lei Complementar nº 73, de 1993, que regulamenta a Advocacia-Geral da União, determina, em seu art. 3º, § 1º, que o Advogado-Geral da União é “submetido à direta, pessoal e imediata supervisão” do presidente da República. Pois bem, o presidente Lula deu instruções diretas, pessoais e imediatas ao então Advogado-Geral da União, hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal, para se pronunciar contra a demanda ajuizada pela OAB junto ao Supremo Tribunal Federal (argüição de descumprimento de preceito fundamental nº 153), no sentido de interpretar a lei de anistia de 1979, como não abrangente dos crimes comuns cometidos pelos agentes públicos, policiais e militares, contra os oponentes políticos ao regime militar.





Mas a condenação moral vai ainda mais além. Ela atinge, em cheio, o Supremo Tribunal Federal e a Procuradoria-Geral da República, que se pronunciaram claramente contra o sistema internacional de direitos humanos, ao qual o Brasil deve submeter-se.





E agora, Brasil?





Bem, antes de mais nada, é preciso dizer que se o nosso país não acatar a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, ele ficará como um Estado fora-da-lei no plano internacional.





E como acatar essa decisão condenatória?





Não basta pagar as indenizações determinadas pelo acórdão. É indispensável dar cumprimento ao art. 37, § 6º da Constituição Federal, que obriga o Estado, quando condenado a indenizar alguém por culpa de agente público, a promover de imediato uma ação regressiva contra o causador do dano. E isto, pela boa e simples razão de que toda indenização paga pelo Estado provém de recursos públicos, vale dizer, é feita com dinheiro do povo.





É preciso, também, tal como fizeram todos os países do Cone Sul da América Latina, resolver o problema da anistia mal concedida. Nesse particular, o futuro governo federal poderia utilizar-se do projeto de lei apresentado pela Deputada Luciana Genro à Câmara dos Deputados, dando à Lei nº 6.683 a interpretação que o Supremo Tribunal Federal recusou-se a dar: ou seja, excluindo da anistia os assassinos e torturadores de presos políticos. Tradicionalmente, a interpretação autêntica de uma lei é dada pelo próprio Poder Legislativo.





Mas, sobretudo, o que falta e sempre faltou neste país, é abrir de par em par, às novas gerações, as portas do nosso porão histórico, onde escondemos todos os horrores cometidos impunemente pelas nossas classes dirigentes; a começar pela escravidão, durante mais de três séculos, de milhões de africanos e afrodescendentes.





Viva o Povo Brasileiro!

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

“PRIMUM VIVERE” OU AS BATATAS DE MACHADO DE ASSIS

“PRIMUM VIVERE” OU AS BATATAS DE MACHADO DE ASSIS

José Osterno Campos de Araújo

Procurador Regional da República

Mestre em Ciências Criminais

Professor do UniCEUB





“Não faço nada demais,

apenas mato.

É uma questão de sobrevivência”1







Em verdade, é o crime quem cria a lei ou, ao contrário, é a lei quem cria o crime? Quem, efetivamente, é o criador? E quem a criatura?



2. Passa-se, desde logo, a palavra à voz autorizada de Paulo Queiroz, o qual, sem meias palavras, responde2:



“Assim, se não há crime nem pena sem lei anterior que os defina, segue-se que, por mais que uma conduta humana seja moralmente reprovável (v.g., o incesto), se não houver lei que a declare criminosa, criminosa não é, sendo jurídico-penalmente irrelevante. É a lei, portanto, que cria o crime, é a lei que cria o criminoso. Numa palavra: crime é só o que o legislador diz que é”.



3. Mais à frente, referindo-se à teoria do etiquetamento (“labeling approach”), arremata3:



“Para essa teoria, o delito carece de consistência material, mas, mais do que isso, são os processos de reação social, é dizer, o controle social mesmo, que criam a conduta desviada, ou seja, a conduta não é desviada em si (qualidade negativa inerente à conduta), mas em razão de um processo social, arbitrário e discriminatório, de reação e seleção”.



4. Não merece reparo a fala do penalista.



5. Toma-se, pois, o crime de homicídio, dito crime rei, na expressão de Laerte Marzagão Júnior4, para, com Vinícius Bittencourt5, perguntar: “É possível matar com a lei?”.



6. Sabe-se - tão-somente por livre opção do legislador - a conduta de matar alguém não configura crime em todas as hipóteses ocorrentes.



7. Matar alguém, por exemplo, não é crime, desde que se mate em observância à regra do artigo 5º, inciso XLVII, alínea “a”, da Constituição Federal e normas legais correlatas. Ou seja, pode-se matar - não criminosamente - desde que o matador - diz a lei - seja o Estado. Ainda, matar alguém não constitui crime, se o resultado morte for consequência de reação permitida a injusta agressão, atual ou iminente, a direito próprio ou de terceiro. Ou seja, pode-se matar - não criminosamente - desde que mediante conduta considerada - pela lei - como lícita. Por fim, matar alguém também não é crime, se a conduta for praticada sob a influência de irresistível coação moral. Ou seja, pode-se matar – mais uma vez não criminosamente – é o que afirma a lei, desde que se atue sem culpa lato senso.



8. “O direito não existe”, diz mais Paulo Queiroz6. Parafraseando o pensador do direito, diz-se: o crime não existe. O crime não existe, sem que seja parido pela lei, parto que inaugura sua existência, existência daquilo (o crime) que antes (da lei) não existia7. De fato, o crime não existe sem a lei, fora da lei e antes da lei. À semelhança do rei Midas, a lei toca o fato e cria o crime. É a lei, e somente ela, quem diz o que é crime.



9. Repete-se, então, a pergunta de Vinícius Bittencourt: “É possível matar com a lei?”8, agora para imaginar contexto histórico-social diverso do em que, atualmente, se vive. Imagine-se o mundo daqui a cento e cinquenta ou duzentos anos. Outra época, outros valores, outras necessidades. A população aumentada, em muito. Os espaços e oportunidades escasseados. Um tanto de gente na disputa de um metro quadrado de chão. Outro tanto na luta por um pouco de comida. A vida, sobremaneira, dificultada pelo excesso de pessoas. A própria subsistência da sociedade global ameaçada pela exacerbação do contingente populacional.



10. Neste (novo) mundo, a eliminação de vidas humanas não seria benéfica ao convívio social? A morte, de alguns, não facilitaria a convivência e subsistência dos demais? Não seria, assim, oportuna e até necessária a descriminalização do homicídio? Pelo menos até a solução do ingente problema do excesso populacional.



11. A vida, neste contexto imaginário, passaria de essencial a prejudicial à convivência e à subsistência social, desvestindo-se assim da roupagem de bem jurídico-penal e não mais merecendo a tutela da lei penal. O que antes era crime - e crime rei, diz Laerte Marzagão Júnior - não mais seria, neste futuro imaginado, por mera opção legal. Também o homicídio não detém “consistência material”9 de crime, de modo dissociado da lei.



12. Neste futuro - não vindouro, espera-se – a morte (de uns) daria vida à vida (de outros).



13. É do que trata Machado de Assis, no episódio “Ao vencedor, as batatas”, mais precisamente no capítulo VI do romance “Quincas Borba”, episódio relembrado por Andrey do Amaral, em seu “O Máximo e as Máximas de Machado de Assis”10, com estrita observância às palavras do Bruxo do Cosme Velho:



“ - Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é a condição da sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípio universal e comum. Daí o caráter conservador e benéfico da guerra. Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”.



14. No episódio das “batatas”, bem como na hipótese do futuro imaginado, chega-se à necessidade de se matar para se viver. Numa palavra: “Primum vivere”.



15. Na “advertência” a nova edição do romance “Helena”, Machado de Assis escreve: “cada obra pertence a seu tempo”11. Em nova paráfrase, agora do construtor de vidas imaginárias, pode-se, então, afirmar: cada crime pertence a seu tempo.



16. Daqui a cento e cinquenta ou duzentos anos, será crime - ainda - matar alguém?



17. A resposta, no futuro, à lei. E somente a ela.


1Trecho do poema “Palavras de um Marginal” de José Osterno Campos de Araújo


2QUEIROZ, Paulo. Direito penal. Parte geral. 6. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010, p. 12.


3Ob. cit. p. 175.


4MARZAGÃO JÚNIOR, Laerte I. Homicídio crime rei. Coordenador. São Paulo: Editora Quartier Latin, 2009.


5BITTENCORT, Vinícius. O criminalista. Romance da advocacia e dos crimes perfeitos. 7. ed. Niterói: Impetus, 2010.


6Ob. cit. p. 10.


7Pense-se na (futura e possível ?!) criminalização do consumo de carne vermelha, à vista da alta e intolerável incidência de mortes decorrentes de elevado nível de colesterol nas pessoas. O consumo de carne vermelha, historicamente, sempre existiu, como fato. Já a consideração de tal fato como crime passa a existir tão-somente a partir da superveniente edição (“parto”) da lei criminalizadora (aqui, no sentido de criar (parir) o crime). A mesma situação poderia ocorrer, no caso de eventual criminalização da aquisição de veículos automotores, dada a exacerbação de mortes decorrentes de acidentes de trânsito.


8BITTENCORT, Vinícius. O criminalista. Romance da advocacia e dos crimes perfeitos. 7. ed. Niterói: Impetus, 2010.


9QUEIROZ, Paulo. Ob. cit. p. 175.


10AMARAL, Andrey do. O máximo e as máximas de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Editora Ciência Moderna, 2008, p. 149-150.


11Apud AMARAL, Andrey do. O máximo e as máximas de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Editora Ciência Moderna, 2008, p. 101.