quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Ficção - entrevista com Nietzsche

Retirado do blog do Paulo Queiroz.


1)Apesar de não ter se dedicado especificamente ao direito, o direito não é um tema estranho à sua filosofia…

NIETZSCHE: Certamente. O que se poderia chamar de a minha filosofia do direito está em grande parte na minha genealogia da moral. De todo modo, como para mim o direito é uma continuação da moral por outros meios, e como a moral é um dos meus temas mais frequentes, penso que parte importante da minha filosofia lhe é aplicável.

2)O que o senhor entende por direito?

NIETZSCHE: Parece-me que o que escrevi sobre a verdade é perfeitamente aplicável ao direito. Eis o que escrevi (fazendo as adaptações necessárias) num pequeno ensaio (verdade e mentira): “O que é, pois, o direito? Um exército móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, numa palavra, uma soma de relações humanas que foram realçadas poética e retoricamente, transpostas e adornadas, e que, após uma longa utilização, parecem a um povo consolidadas, canônicas e obrigatórias: o direito é uma ilusão da qual se esqueceu que ele assim o é”. Ou, se preferir, eu poderia me valer também do que escrevi sobre a moral para dizer: “Minha sentença principal: não há nenhum fenômeno jurídico, mas, antes, apenas uma interpretação jurídica desses fenômenos. Essa interpretação é, ela própria, de origem extrajurídica”.

Enfim, o que os senhores pretendem como sendo o Direito é apenas uma palavra para a vontade de poder, de sorte que quem tem o poder cria o direito; quem não o tem o sofre. Afinal, só é direito o que o poder reconhece como tal. Basta pensá-lo e contextualizá-lo historicamente.

3)Mas isso não é uma excessiva relativização? Se for assim, então tudo pode ser direito (matar, roubar, estuprar etc.).

NIETZSCHE: Mas tudo isso é e sempre foi praticado em nome do direito, de ontem e de hoje. O que é, afinal, o aborto legal senão uma autorização para matar um ser indefeso? O que é a pena de morte senão um homicídio? O que é a legítima defesa senão uma legitimação para ferir, matar etc.? E o que é o agente infiltrado senão uma autorização para cometer toda sorte de crimes? O que são as penas e medidas de segurança senão seqüestros legais?

A minha resposta é, pois, sim! Matar, roubar, estuprar pode ser conforme o direito (ou contra o direito), inclusive porque o que seja “matar”, “roubar”, “estuprar” e as possíveis formas de legitimação dessas ações não estão previamente dadas, apesar de existir grande consenso sobre tais assuntos. Kelsen (in teoria pura) tinha razão, portanto, quando dizia que o absurdo pode ser direito.

Enfim, é o poder (um conjunto de relações histórica e permanentemente em construção) que, em última análise, cria e extingue estados, promulga leis e revoga constituições, institui exércitos e parlamentos, declara a guerra e a paz, forja deuses e demônios, distingue mito e realidade, saber e ignorância, bem e mal, verdade e mentira, direito e torto.

4)Se o senhor estiver correto, então uma sociedade de criminosos também teria direito?

NIETZSCHE: Sem dúvida, embora não seja o direito oficial ou o tipo de direito que o senhor gostaria de ver instituído/reconhecido, possivelmente. Se o senhor tiver alguma dúvida quanto a isso, consulte, a propósito, o estatuto do PCC (Primeiro Comando da Capital), que tem como princípios declarados: “1. Lealdade, respeito e solidariedade acima de tudo ao Partido. 2. A luta pela liberdade, justiça e paz. 3. A união da luta contra as injustiças e a opressão dentro das prisões.” Diz ainda (9) que “o partido não admite mentiras, traição, inveja, cobiça, calúnia, egoísmo, interesse pessoal, mas, sim, a verdade, a fidelidade, a hombridade, a solidariedade e o interesse como o bem de todos, porque somos um por todos e todos por um”.

Repito que o direito é um conjunto móvel de metáforas e metonímias produzidas pelas relações de poder; ou, como diz Pierre Bourdieu (in o poder simbólico), “o que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras”.

E mais: não seria direito o direito antigo pelo só fato de admitir a escravidão e semelhantes como instituições jurídicas? O direito iraniano (e de outros tantos países) não teria o status de direito pelo só fato de, entre outras coisas, criminalizar o homossexualismo, punir o adultério com pena de morte etc.? Seria possível pensar o direito para além do tempo e do espaço e das relações de poder que o constituem? Na verdade, aquilo que designamos por direito pode ser eventualmente tão ou mais violento ou cruel quanto o que se pretende combater por meio dele (as ilegalidades).

5)Alguns autores defendem atualmente que, apesar da vagueza da linguagem, dos prejuízos do intérprete etc., existiria a única resposta correta ou, ao menos, a resposta correta. Como o senhor vê isso?

NIETZSCHE: lia há pouco o império do direito do Sr. Ronald Dworkin. O que temos ali? O juiz Hércules é uma alegoria (dela também me vali no meu Zaratustra) por meio da qual o Sr. Dworkin expõe suas próprias ideias sobre o que é o direito e o que ele entende por resposta correta. Hércules e Dworkin são, pois, uma só e mesma pessoa; logo, os limites de Hércules são os limites do homem Dworkin (limites morais, religiosos, jurídicos, filosóficos, políticos etc.).

E por recorrer (também) a uma fábula (a fábula do juiz perfeito) o autor, embora fundamente suas posições juridicamente, conclui fabulosamente (existe uma resposta correta e essa resposta é dada por um juiz fabuloso, o juiz Hércules, isto é, uma resposta dada pelo próprio Dworkin). Conclusão: a resposta correta proposta por Hércules é a resposta correta na perspectiva de Dworkin. Não é, obviamente, nem a única, nem a melhor, nem a mais correta, mas apenas isso: a resposta correta de Dworkin (na verdade, o que ele propõe me pareceu essencialmente um procedimento), inclusive porque a correção da resposta não é, a rigor, uma qualidade da resposta mesma, mas uma relação entre o intérprete e a resposta; logo, mudando o intérprete, muda, consequentemente, a resposta que se pretende por correta. Porque o que quer que possa ser pensado, por quem quer que possa ser pensado, como quer que seja pensado, sempre poderá ser pensado de diversas outras formas e, pois, conduzir a resultados também diversos.

Finalmente, a adoção de um determinado procedimento (método etc.) não é garantia de uma mesma resposta, nem será (só por isso) necessariamente correta ou adequada. Se fosse, no futuro, os atuais juízes poderiam ser substituídos por sofisticados programas de computador; poderíamos, inclusive, em homenagem a Dworkin, chamá-los de Hércules. E mais: decisões tecnicamente corretas não são forçosamente decisões justas (e vice-versa).

Enfim, Dworkin parece não se dar conta de que “nossos valores são introduzidos nas coisas pela interpretação, que todo sentido é necessariamente sentido de relação e perspectiva, enfim, que todo sentido é vontade de poder” (in vontade de poder). A minha hipótese é a de que o próprio “in-divíduo” é multiplicidade. Exatamente por isso, tudo que entra na consciência como unidade já é imensamente complicado: temos sempre uma aparência de unidade (in vontade de poder). Naturalmente que Dworkin não ignora semelhante crítica (ele a chama de “ceticismo exterior”), mas a considera “tão verdadeira quanto inútil”.

O que Dworkin pretende é uma ingenuidade, portanto. Repito aqui o que disse no meu crepúsculo dos ídolos: Desconfio de todos os sistematizadores e os evito; a vontade de sistema é uma falta de retidão!



Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em Röcken, Prússia, em 1844 e morreu em Weimar, em 1900. A entrevista – fictícia, obviamente – foi imaginada a partir de seus textos (nem todos citados).

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

“A concepção vingativa da pena: castigo como violação da norma penal”.

“A concepção vingativa da pena: castigo como violação da norma penal”.

Por Rafael Silva de Faria

“Quem procura o fundamento jurídico da pena deve também procurar, se é que já não encontrou, o fundamento jurídico da guerra.” (TOBIAS BARRETO apud CARVALHO)


Grande arauto das liberdades individuais, o saudoso EVANDRO LINS E SILVA, em depoimento dado ao Centro de Pesquisas e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), no qual originou a obra “O salão dos passos perdidos”, asseverava que “a prisão é realmente monstruosa, e eu tenho verdadeira alergia à cadeia. A política criminal hoje dominante no pensamento científico dos estudiosos do direito penal é: prisão só ultima ratio, só em último caso.” (p. 214)
Na sequência o eminente criminalista, ex –ministro do STF, ao discorrer sobre a pena de morte e sua ineficácia, porquanto não diminuiria a criminalidade, aduzia que “na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipar um pouco ao próprio delinqüente.” (p. 215)
É de tempos imemoriais a concepção de que as penas para os que infringem a norma penal lato sensu (pré-positivação) visavam retribuir o ‘mal pelo mal’.
NORBERTO BOBBIO, em escrito sobre apena de morte de 1981, revela a historicidade da idéia do ‘olho por olho, dente por dente’ em PLATÃO, nesses termos:
“(...) tomemos um livro clássico, o primeiro grande livro sobre a justiça de nossa civilização ocidental: as leis, os nómoi, de Platão. No livro IX, Platão dedica algumas páginas ao problema das leis penais. Reconhece que ‘a pena deve ter a finalidade de tornar melhor’. Mas aduz que, ‘se se demonstrar que o delinqüente é incurável, a morte será para ele o menor dos males. (...) Falando precisamente de homicidas voluntários, Platão diz em certo momento que eles devem ‘necessariamente pagar a pena natural’, ou seja, a de ‘padecer o que fizeram’ (870 e). Chamo a atenção para o adjetivo ‘natural’, e para o princípio de ‘padecer’ o que se fez. Esse princípio, que nasce da doutrina da reciprocidade – que é dos Pitagóricos (mais antiga ainda, portanto, que a de Platão) e que será formulada pelos juristas medievais e repetida durante séculos com a famosa expressão segundo a qual o malum passions deve corresponder a malum actions – atravessa toda a história do direito penal e chega até nós absolutamente inalterado.” (BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 1992, p. 161/62).
JUAREZ CIRINO DOS SANTOS explica que a literatura penal possui várias explicações para a sobrevivência histórica da função retributiva da pena criminal. Primeiro, a psicologia popular, regida pelo talião, constitui a base antropológica da pena; segundo, a tradição religiosa judaico-cristã acidental apresenta a imagem retributiva-negativa da justiça divina; terceiro, a filosofia idealista ocidental é retributiva (Kant, Hegel, Jakobs, Feurbach); quarto, o discurso retributivo se baseia na lei penal que consagra o princípio da retribuição, insculpido no art. 59 do Código penal (o legislador determina ao juiz aplicar a pena conforme o necessário e suficiente para a reprovação do crime). (CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Teoria da pena. Fundamentos políticos e aplicação judicial, 2005, p. 04)
O direito penal arcaico, ou seja, anterior a Revolução Francesa, tinha como função da pena tão-somente a retribuição, conquanto inquestionável o caráter retributivo da pena hodiernamente (timbre real e inegável); a pena que se detém na simples retributividade, em nada se distingue da vingança, convertendo-se seu modo em seu fim (BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1996, p. 100).
THIAGO FABRES DE CARVALHO, em ensaio jurídico sobre o filme “Abril Despedaçado”, que relata história de famílias que se exterminam geração após geração, empreende uma ‘antropologia hermenêutica da violência’ relatada no filme. Amparado nas lições de François Ost, FABRES DE CARVALHO ensina que “o crime que a vingança pune, explica René Girardi, ‘quase nunca se concebe a si mesmo como primeiro; pretende ser já vingança de um crime mais original’.” (MORAIS DA ROSA, Alexandre; FABRES DE CARVALHO, Thiago. Processo penal eficiente e ética da vingança: em busca de uma criminologia da não violência. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen júris, 2010, p. 105)
O Direito penal, de todos os ramos do direito, é o que mais oprime por violar o mais importante bem jurídico individual – a liberdade -; ademais, por selecionar indivíduos que estão à margem da sociedade, denunciado pela Criminologia Crítica (“A intervenção [penal] busca manter as regras formais do Mercado”- MORAIS DA ROSA), o Direito repressor demarca uma perpetuação e perene situação de violência, por meio, precipuamente das penas corporais, que estigmatiza e ‘dessocializa’ qualquer cidadão que cai no sistema punitivo.
Segundo DERRIDA, “O próprio surgimento da justiça e do direito, o momento instituidor, fundador e justificante do direito, implica uma força performativa, isto é, sempre uma força interpretadora e um apelo à crença. (...) a operação de fundar, inaugurar, justificar o direito, fazer a lei, consistiria num golpe de força, numa violência performativa e, portanto interpretativa que, nela mesma, não é nem justa nem injusta, e que nenhuma justiça, nenhum direito prévio e anteriormente fundador, nenhuma fundação pré-existente, por definição, poderia nem garantir nem contradizer ou invalidar.” (DERRIDA apud MORAIS DA ROSA; FABRES DE CARVALHO, ob. cit. p.121)
Nessa esteira, do surgimento do direito e justiça como apelo à crença, destacado por DERRIDA, encontra-se, com o recrudescimento das penas e expansão do direito penal, a função simbólica da pena. O senso comum crê que o direito penal seja panacéia, olvidando-se que o apenado, cedo ou tarde, retornará ao seio social, formando-se o ciclo de violência (tão bem retratado no ensaio de Fabres de Carvalho), agora institucionalizado pelo Estado.
Desse modo, surge a indagação feita por LOUK HULSMAN: “(...) o homem é naturalmente bom ou mau? O homem tem necessidade de se vingar, de responder à violência com violência? (...) Afirmo que se o espírito de vingança devesse necessariamente se expressar, poderia ser canalizado de forma diferente da que ocorre no atual sistema punitivo.” (HULSMAN, Louk. CELIS, Jaqueline Bernat de. Penas Perdidas. O sistema penal em questão. Trad. Maria Lucia Karam. Ed. Luam, p. 119)
HULSMAN, expoente do abolicionismo penal, prossegue alegando que as formas mais benignas de reação ao crime exsurgiram quando os poderes se centralizaram e não mantêm qualquer tipo de ligação com desejo de vingança. A antropologia e a história ensinam que não é a duração do sofrimento inflingido que apaziguam os que clamam por vingança, mas sim a dimensão simbólica da pena, ou seja, o sentido de reprovação social do fato que lhe é atribuído (HULSMAN, Louk. CELIS, Jaqueline Bernat de. Ob. cit. p. 120/21).
Para ALICE BIANCHINI, “O que importa, para a função simbólica, é manter um nível de tranqüilidade na opinião pública, fundado na impressão de que o legislador se encontra em sintonia com as preocupações que emanam da sociedade. Criam-se, assim, novos tipos penais, incrementam-se penas, restringem-se direitos sem que, substancialmente, tais opções representem perspectivas de mudança no quadro que determinou a alteração (ou criação) legislativa. Produz-se a ilusão que algo foi feito.” (BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. São Paulo: Ed. RT, 2002, p. 124)
O espírito de vingança, entrelaçado com a função simbólica da pena, cegam o senso comum (inclusive do legislador ordinário), de modo que o instinto primitivo de vingança aflora sempre que a grande mídia noticia crimes de grande repercussão social, fazendo com que a vingança privada, literalmente, ressurja (Vide caso Nardoni: a população fez vigília em frente ao fórum no dia do julgamento gritando palavras de ordem e clamando por ‘justiça’ com, inclusive, linchamento moral do defensor do casal).
Daí o questionamento de FABRES DE CARVALHO: “Como justificar, portanto, o imaginário social punitivo, o anseio presente em todos os grupos sociais de esconjurar a violência mortífera, de criar mecanismos capazes de transformar o desejo de vindicta numa instituição social susceptível de limpar a mácula da ofensa, de compensar o prejuízo sofrido, e assim restaurar a concórdia no seio do grupo? Quais as fontes do imaginário punitivo, e em que medida podem atuar para restabelecer a paz no interior da comunidade? Quais as relações, portanto, entre pena e memória, entre pena e recordação da lei, afinal entre pena e vingança? Como superar ou transcender o castigo como puro e simples desejo de vingança cega e mortífera?” (MORAIS DA ROSA, Alexandre; FABRES DE CARVALHO, Thiago. Ob. cit. p. 131/32).
LOUK HULSMAN entende que “O sistema penal é especificamente concebido para fazer mal. (...) O sistema penal (...) produz violência, (...) na medida em que, independente da vontade das pessoas que o acionam, ele é estimatizante, ou seja, gera uma perda de dignidade. É isso a estigmatização... (...)”.(HULSMAN, Louk. CELIS, Jaqueline Bernat de. Ob. cit. p. 88).
SALO DE CARVALHO é categórico quanto ao efeito inverso da pena criada para conter a barbárie medieva de modo que “(...) as ciências criminais – concebidas como integração entre as técnicas dogmáticas do direito penal e processual penal, da criminologia e da política criminal -, direcionadas a anular a violência do bárbaro e a afirmar os ideais civilizados, ao longo do processo de constituição (e de crise) da Modernidade, produziram seu oposto, ou seja, colocaram em marcha tecnologia formatada pelo uso desmedido da força, cuja programação, caracterizada pelo alto poder destrutivo, tem gerado inominável custos de vidas humanas. O motivo deste aparente paradoxo é apresentado por Morin: ‘La barbárie no es solo um elemento que acompaña a la civilización, sino que la integra. La civilización produce barbárie(...)’.3
Possível, portanto, neste quadro, concordar com Luigi Ferrajoli no sentido de que “a história das penas é seguramente mais horrenda e infame para a humanidade que a própria história dos delitos’.4” (CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010 p. xxii).
Nesse cenário de ‘castigo institucionalizado’ (FABRES DE CARVALHO), e à guisa de conclusão, mister trazer à tona que a missão do Direito penal não pode ser a de realizar vinganças, que se perpetuam, inexoravelmente no tempo, mas tão-somente tutelar bens jurídicos, não perdendo de vista o Princípio da intervenção mínima (ultima ratio)e seus consectários, tais quais, os Princípios da subsidiariedade e fragmentariedade.
Ademais, o caráter retributivo da pena (retribuir para expiar um mal [crime] com outro mal [pena]) pode ser considerado ato de fé, mas não é democrático nem científico, porquanto, no Estado Democrático de Direito o poder é exercido em nome do povo, e não em nome de Deus, e a pena como retribuição do crime se fundamenta num dado indemonstrável: a liberdade de vontade do ser humano, pressuposta no juízo de culpabilidade (CIRINO DOS SANTOS, Juarez, ob.cit., p. 05/06)
Importante destacar, a título de conclusão, o § 33 da obra “Humano, demasiado humano”, de NIETZSCHE, intitulado ‘Elementos da vingança’, que se amolda a tudo do que foi trabalhado até agora, nesses termos:
“A palavra Rache (vingança) se pronuncia tão depressa: parece quase como se não pudesse conter mais de uma raiz de conceito e de sentimento. (...) Como se todas as palavras não fossem bolsos em que se guardou ora isto, ora aquilo, ora várias coisas de uma vez!” (NIETZCHE, Friederich Wilhelm. Os pensadores. Obras incompletas. Humano, demasiado humano. 2ª ed. São Paulo: Abril cultural, 1978, p. 144)
Na sequência, divagando sobre a vingança, NIETZSCHE aduz que mister a distinção da vingança como um contragolpe defensivo que se desfecha quase sem querer, tal como um revide instintivo; do mesmo modo se procede contra pessoas que causam dano: uma meditação sobre a vulnerabilidade do outro e sua aptidão ao sofrimento é sua pressuposição: quer-se fazer mal. (ob. cit. p. 144)
Daí indaga NIETZSCHE:
“Se na primeira espécie de vingança era o medo do segundo golpe que tornava o contragolpe tão forte quanto possível. Aqui há quase total indiferença diante daquilo que o adversário fará; a força do contragolpe é determinada somente por aquilo que ele nos fez. E o que foi que ele fez? E de que nos serve que sofra agora, depois que nós sofremos por causa dele? Trata-se de uma restauração (...). Assim, por meio da pena judicial, tanto a honra privada com também a honra social são restauradas: isto é – a pena é vingança. – Há também nela, indubitavelmente, aquele outro elemento da vingança descrito em primeiro lugar, na medida que graças a ela a sociedade serve à sua autoconservação e desfere um contragolpe em legítima defesa. A pena quer impedir um novo dano, quer intimidar. Dessa maneira, ambos os elementos tão diferentes da vingança estão efetivamente vinculados na pena, e isso pode ser, talvez, o que mais atua no sentido de entreter aquela mencionada confusão de conceitos, em virtude da qual o indivíduo que se vinga costuma não saber o que quer propriamente.” (ob. Cit. p. 144/46)




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1996.

BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. São Paulo: Ed. RT, 2002.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 1992.

CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Teoria da pena. Fundamentos políticos e aplicação judicial, 2005.

HULSMAN, Louk. CELIS, Jaqueline Bernat de. Penas Perdidas. O sistema penal em questão. Trad. Maria Lucia Karam. Ed. Luam

MORAIS DA ROSA, Alexandre; FABRES DE CARVALHO, Thiago. Processo penal eficiente e ética da vingança: em busca de uma criminologia da não violência. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen júris, 2010.

NIETZCHE, Friederich Wilhelm. Os pensadores. Obras incompletas. Humano, demasiado humano. 2ª ed. São Paulo: Abril cultural, 1978.

SILVA, Evandro Lins e. O salão dos passos perdidos. Ed. Nova fronteira.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Responsabilidade civil objetiva. Prisão preventiva de pessoa inocente. Dever de indenizar

“Bar Bodega”. Responsabilidade civil objetiva. Prisão preventiva de pessoa inocente. Dever de indenizar
Celso de Mello

RE 385943/SP*

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

EMENTA: RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO (CF, ART. 37, § 6º). CONFIGURAÇÃO. “BAR BODEGA”. DECRETAÇÃO DE PRISÃO CAUTELAR, QUE SE RECONHECEU INDEVIDA, CONTRA PESSOA QUE FOI SUBMETIDA A INVESTIGAÇÃO PENAL PELO PODER PÚBLICO. ADOÇÃO DESSA MEDIDA DE PRIVAÇÃO DA LIBERDADE CONTRA QUEM NÃO TEVE QUALQUER PARTICIPAÇÃO OU ENVOLVIMENTO COM O FATO CRIMINOSO. INADMISSIBILIDADE DESSE COMPORTAMENTO IMPUTÁVEL AO APARELHO DE ESTADO. PERDA DO EMPREGO COMO DIRETA CONSEQÜÊNCIA DA INDEVIDA PRISÃO PREVENTIVA. RECONHECIMENTO, PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA LOCAL, DE QUE SE ACHAM PRESENTES TODOS OS ELEMENTOS IDENTIFICADORES DO DEVER ESTATAL DE REPARAR O DANO. NÃO-COMPROVAÇÃO, PELO ESTADO DE SÃO PAULO, DA ALEGADA INEXISTÊNCIA DO NEXO CAUSAL. CARÁTER SOBERANO DA DECISÃO LOCAL, QUE, PROFERIDA EM SEDE RECURSAL ORDINÁRIA, RECONHECEU, COM APOIO NO EXAME DOS FATOS E PROVAS, A INEXISTÊNCIA DE CAUSA EXCLUDENTE DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO PODER PÚBLICO. INADMISSIBILIDADE DE REEXAME DE PROVAS E FATOS EM SEDE RECURSAL EXTRAORDINÁRIA (SÚMULA 279/STF). DOUTRINA E PRECEDENTES EM TEMA DE RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO. ACÓRDÃO RECORRIDO QUE SE AJUSTA À JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE CONHECIDO E IMPROVIDO.

DECISÃO: O presente recurso extraordinário foi interposto contra decisão, que, proferida pelo E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, acha-se consubstanciada em acórdão assim ementado (fls. 259):

“Indenização pleiteada em favor de pessoa indevidamente envolvida em inquérito policial arquivado. Cabimento de danos materiais e morais. 1. Apesar da ausência de erro judiciário, o Estado tem o dever de assegurar ao cidadão o exercício dos direitos subjetivos outorgados na Constituição, com margem de segurança. 2. Inobservada aquela cautela, resulta configurada a responsabilidade objetiva e o dever de reparação devido à vítima de imputação descabida. 3. Embargos infringentes rejeitados.” (grifei)

O Estado de São Paulo, no apelo extremo em questão, alega a inexistência, na espécie, do nexo de causalidade material entre o evento danoso e a ação do Poder Público, eis que a “(...) demonstração de que a prisão provisória do autor, para fins averiguatórios, ocorreu nos estritos limites da lei, através de decisão judicial fundamentada e mantida pelo Tribunal em grau de ‘Habeas Corpus’, afigura-se como causa excludente de responsabilidade na medida em que rompe o nexo causal entre a ação do poder público e o evento danoso” (fls. 269 - grifei).

O exame destes autos convence-me de que não assiste razão ao Estado ora recorrente, quando sustenta - para descaracterizar a sua responsabilidade civil objetiva a respeito do evento danoso em causa - “que a prisão provisória do autor, para fins averiguatórios, ocorreu nos estritos limites da lei, através de decisão judicial fundamentada e mantida pelo Tribunal em grau de ‘Habeas Corpus’” (fls. 269).

Com efeito, a situação de fato que gerou o gravíssimo evento narrado neste processo (prisão cautelar de pessoa inocente) põe em evidência a configuração, no caso, de todos os pressupostos primários que determinam o reconhecimento da responsabilidade civil objetiva da entidade estatal ora recorrente.

Cumpre observar, no ponto, por oportuno, que a questão concernente ao reconhecimento do dever do Estado de reparar danos causados por seus agentes mereceu amplo debate doutrinário, que subsidiou, em seus diversos momentos, o tratamento jurídico que essa matéria recebeu no plano de nosso direito positivo.

Como se sabe, a teoria do risco administrativo, consagrada em sucessivos documentos constitucionais brasileiros, desde a Carta Política de 1946, revela-se fundamento de ordem doutrinária subjacente à norma de direito positivo que instituiu, em nosso sistema jurídico, a responsabilidade civil objetiva do Poder Público, pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, por ação ou por omissão (CF, art. 37, § 6º).

Essa concepção teórica - que informa o princípio constitucional da responsabilidade civil objetiva do Poder Público, tanto no que se refere à ação quanto no que concerne à omissão do agente público - faz emergir, da mera ocorrência de lesão causada à vítima pelo Estado, o dever de indenizá-la pelo dano pessoal e/ou patrimonial sofrido, independentemente de caracterização de culpa dos agentes estatais ou de demonstração de falta do serviço público, não importando que se trate de comportamento positivo ou que se cuide de conduta negativa daqueles que atuam em nome do Estado, consoante enfatiza o magistério da doutrina (HELY LOPES MEIRELLES, “Direito Administrativo Brasileiro”, p. 650, 31ª ed., 2005, Malheiros; SERGIO CAVALIERI FILHO, “Programa de Responsabilidade Civil”, p. 248, 5ª ed., 2003, Malheiros; JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, “Curso de Direito Administrativo”, p. 90, 17ª ed., 2000, Forense; YUSSEF SAID CAHALI, “Responsabilidade Civil do Estado”, p. 40, 2ª ed., 1996, Malheiros; TOSHIO MUKAI, “Direito Administrativo Sistematizado”, p. 528, 1999, Saraiva; CELSO RIBEIRO BASTOS, “Curso de Direito Administrativo”, p. 213, 5ª ed., 2001, Saraiva; GUILHERME COUTO DE CASTRO, “A Responsabilidade Civil Objetiva no Direito Brasileiro”, p. 61/62, 3ª ed., 2000, Forense; MÔNICA NICIDA GARCIA, “Responsabilidade do Agente Público”, p. 199/200, 2004, Fórum, v.g.), cabendo ressaltar, no ponto, a lição expendida por ODETE MEDAUAR (“Direito Administrativo Moderno”, p. 430, item n. 17.3, 9ª ed., 2005, RT):

“Informada pela ‘teoria do risco’, a responsabilidade do Estado apresenta-se hoje, na maioria dos ordenamentos, como ‘responsabilidade objetiva’. Nessa linha, não mais se invoca o dolo ou culpa do agente, o mau funcionamento ou falha da Administração. Necessário se torna existir relação de causa e efeito entre ação ou omissão administrativa e dano sofrido pela vítima. É o chamado nexo causal ou nexo de causalidade. Deixa-se de lado, para fins de ressarcimento do dano, o questionamento do dolo ou culpa do agente, o questionamento da licitude ou ilicitude da conduta, o questionamento do bom ou mau funcionamento da Administração. Demonstrado o nexo de causalidade, o Estado deve ressarcir.” (grifei)

É certo, no entanto, que o princípio da responsabilidade objetiva não se reveste de caráter absoluto, eis que admite abrandamento e, até mesmo, exclusão da própria responsabilidade civil do Estado nas hipóteses excepcionais configuradoras de situações liberatórias - como o caso fortuito e a força maior - ou evidenciadoras de ocorrência de culpa atribuível à própria vítima (RDA 137/233 - RTJ 55/50 - RTJ 163/1107-1109, v.g.).

Impõe-se destacar, neste ponto, na linha da jurisprudência prevalecente no Supremo Tribunal Federal (RTJ 163/1107-1109, Rel. Min. CELSO DE MELLO - AI 299.125/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), que os elementos que compõem a estrutura e delineiam o perfil da responsabilidade civil objetiva do Poder Público compreendem (a) a alteridade do dano, (b) a causalidade material entre o “eventus damni” e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente público, (c) a oficialidade da atividade causal e lesiva imputável a agente do Poder Público, que, nessa condição funcional, tenha incidido em conduta comissiva ou omissiva, independentemente da licitude, ou não, do seu comportamento funcional (RTJ 140/636) e (d) a ausência de causa excludente da responsabilidade estatal (RTJ 55/503 - RTJ 71/99 - RTJ 91/377 - RTJ 99/1155 - RTJ 131/417).

A compreensão desse tema e o entendimento que resulta da exegese dada ao art. 37, § 6º, da Constituição foram bem definidos e expostos pelo Supremo Tribunal Federal em julgamentos cujos acórdãos estão assim ementados:

“RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO PODER PÚBLICO - PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL.

- A teoria do risco administrativo, consagrada em sucessivos documentos constitucionais brasileiros desde a Carta Política de 1946, confere fundamento doutrinário à responsabilidade civil objetiva do Poder Público pelos danos a que os agentes públicos houverem dado causa, por ação ou por omissão. Essa concepção teórica, que informa o princípio constitucional da responsabilidade civil objetiva do Poder Público, faz emergir, da mera ocorrência de ato lesivo causado à vítima pelo Estado, o dever de indenizá-la pelo dano pessoal e/ou patrimonial sofrido, independentemente de caracterização de culpa dos agentes estatais ou de demonstração de falta do serviço público.

- Os elementos que compõem a estrutura e delineiam o perfil da responsabilidade civil objetiva do Poder Público compreendem (a) a alteridade do dano, (b) a causalidade material entre o eventus damni e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente público, (c) a oficialidade da atividade causal e lesiva, imputável a agente do Poder Público, que tenha, nessa condição funcional, incidido em conduta comissiva ou omissiva, independentemente da licitude, ou não, do comportamento funcional (RTJ 140/636) e (d) a ausência de causa excludente da responsabilidade estatal (RTJ 55/503 - RTJ 71/99 - RTJ 91/377 - RTJ 99/1155 - RTJ 131/417).

- O princípio da responsabilidade objetiva não se reveste de caráter absoluto, eis que admite o abrandamento e, até mesmo, a exclusão da própria responsabilidade civil do Estado, nas hipóteses excepcionais configuradoras de situações liberatórias - como o caso fortuito e a força maior - ou evidenciadoras de ocorrência de culpa atribuível à própria vítima (RDA 137/233 - RTJ 55/50). (...).”

(RTJ 163/1107-1108, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

“- Recurso extraordinário. Responsabilidade civil do Estado. Morte de preso no interior do estabelecimento prisional. 2. Acórdão que proveu parcialmente a apelação e condenou o Estado do Rio de Janeiro ao pagamento de indenização correspondente às despesas de funeral comprovadas. 3. Pretensão de procedência da demanda indenizatória. 4. O consagrado princípio da responsabilidade objetiva do Estado resulta da causalidade do ato comissivo ou omissivo e não só da culpa do agente. Omissão por parte dos agentes públicos na tomada de medidas que seriam exigíveis a fim de ser evitado o homicídio. 5. Recurso conhecido e provido para condenar o Estado do Rio de Janeiro a pagar pensão mensal à mãe da vítima, a ser fixada em execução de sentença.”

(RTJ 182/1107, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA - grifei)

É por isso que a ausência de qualquer dos pressupostos legitimadores da incidência da regra inscrita no art. 37, § 6º, da Carta Política basta para descaracterizar a responsabilidade civil objetiva do Estado, especialmente quando ocorre circunstância que rompe o nexo de causalidade material entre o comportamento do agente público (positivo ou negativo) e a consumação do dano pessoal ou patrimonial infligido ao ofendido.

As circunstâncias do presente caso, no entanto, apoiadas em pressupostos fáticos soberanamente reconhecidos pelo Tribunal “a quo”, evidenciam que se reconheceu presente, na espécie, o nexo de causalidade material, ao contrário do que sustentado pelo Estado de São Paulo, que pretendeu tê-lo por inexistente.

Daí a correta observação feita pelo E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, constante do acórdão ora recorrido (fls. 261):

“No caso dos autos, comprovada a prisão provisória do embargado, seguida da segregação preventiva e do arquivamento do inquérito policial, inafastável a conclusão de que houve falha da Administração na execução da diligências policiais, donde emerge a responsabilidade objetiva do Estado (...).” (grifei)

Inquestionável, desse modo, que a existência do nexo causal - cujo reconhecimento, pelo Tribunal ora recorrido, efetivou-se em sede recursal meramente ordinária - teve por suporte análise do conjunto probatório subjacente ao pronunciamento jurisdicional em referência.

Esse dado assume relevo processual, pois a discussão ora suscitada pelo Estado de São Paulo em torno da pretendida inexistência, na espécie, do nexo de causalidade material revela-se incabível em sede de recurso extraordinário, por depender do exame de matéria de fato, de todo inadmissível na via do apelo extremo.

Como se sabe, o recurso extraordinário não permite que se reexaminem, nele, em face de seu estrito âmbito temático, questões de fato ou aspectos de índole probatória (RTJ 161/992 - RTJ 186/703). É que o pronunciamento do Tribunal “a quo” sobre matéria de fato (como o reconhecimento da existência do nexo de causalidade material, p. ex.) reveste-se de inteira soberania (RTJ 152/612 - RTJ 153/1019 - RTJ 158/693, v.g.).

Impende enfatizar, neste ponto, que esse entendimento (inadmissibilidade do exame, em sede recursal extraordinária, da pretendida inexistência do nexo de causalidade) tem pleno suporte no magistério jurisprudencial desta Suprema Corte (AI 505.473-AgR/RJ, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA - RE 234.093-AgR/RJ, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - RE 257.090-AgR/RJ, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA - AI 299.125/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.):

“AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. RESPONSABILIDADE DO ESTADO. NEXO DE CAUSALIDADE. REEXAME DE FATOS E PROVAS. SÚMULA 279-STF.

Responsabilidade objetiva do Estado por morte de preso em complexo penitenciário. Alegações de culpa exclusiva da vítima e de ausência de nexo de causalidade entre a ação ou omissão de agentes públicos e o resultado. Questões insuscetíveis de serem apreciadas em recurso extraordinário, por exigirem reexame de fatos e provas (Súmula 279-STF). Precedentes.

Agravo regimental a que se nega provimento.”

(AI 343.129-AgR/RS, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA - grifei)

“1. RECURSO. Extraordinário. Inadmissibilidade. Reexame de fatos e provas. Responsabilidade do Estado. Tiroteio entre policiais e bandidos. Morte de transeunte. Nexo de causalidade. Reexame. Impossibilidade. Ofensa indireta à Constituição. Agravo regimental não provido. Inadmissível, em recurso extraordinário, o reexame dos fatos e provas em que se baseou o acórdão recorrido para reconhecer a responsabilidade do Estado por danos que seus agentes causaram a terceiro. (...).”

(RE 286.444-AgR/RJ, Rel. Min. CEZAR PELUSO - grifei)

“RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO (CF, ART. 37, § 6º). POLICIAL MILITAR, QUE, EM SEU PERÍODO DE FOLGA E EM TRAJES CIVIS, EFETUA DISPARO COM ARMA DE FOGO PERTENCENTE À SUA CORPORAÇÃO, CAUSANDO A MORTE DE PESSOA INOCENTE. RECONHECIMENTO, NA ESPÉCIE, DE QUE O USO E O PORTE DE ARMA DE FOGO PERTENCENTE À POLÍCIA MILITAR ERAM VEDADOS AOS SEUS INTEGRANTES NOS PERÍODOS DE FOLGA. CONFIGURAÇÃO, MESMO ASSIM, DA RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO PODER PÚBLICO. PRECEDENTE (RTJ 170/631). PRETENSÃO DO ESTADO DE QUE SE ACHA AUSENTE, NA ESPÉCIE, O NEXO DE CAUSALIDADE MATERIAL, NÃO OBSTANTE RECONHECIDO PELO TRIBUNAL ‘A QUO’, COM APOIO NA APRECIAÇÃO SOBERANA DO CONJUNTO PROBATÓRIO. INADMISSIBILIDADE DE REEXAME DE PROVAS E FATOS EM SEDE RECURSAL EXTRAORDINÁRIA. PRECEDENTES ESPECÍFICOS EM TEMA DE RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO. ACÓRDÃO RECORRIDO QUE SE AJUSTA À JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE CONHECIDO E IMPROVIDO.”

(RE 291.035/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Cumpre ressaltar, por tal razão, em face do caráter soberano do acórdão recorrido (que reconheceu, com apoio no exame de fatos e provas, a ausência de demonstração da ruptura do nexo causal sustentada pelo Estado de São Paulo), que o Tribunal de Justiça interpretou, com absoluta fidelidade, a norma constitucional que consagra, em nosso sistema jurídico, a responsabilidade civil objetiva do Poder Público.

Com efeito, o acórdão impugnado na presente sede recursal extraordinária, ao fazer aplicação do preceito constitucional em referência (CF, art. 37, § 6º), reconheceu, com inteiro acerto, no caso em exame, a cumulativa ocorrência dos requisitos concernentes (1) à consumação do dano, (2) à conduta dos agentes estatais, (3) ao vínculo causal entre o evento danoso e o comportamento dos agentes públicos e (4) à ausência de qualquer causa excludente de que pudesse eventualmente decorrer a exoneração da responsabilidade civil do Estado de São Paulo.

Cabe acentuar, por necessário, que esse entendimento vem sendo observado em sucessivos julgamentos, proferidos no âmbito desta Corte, a propósito de questão virtualmente idêntica à que ora se examina nesta sede recursal (AI 654.562-AgR/GO, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - RE 505.393/PE, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - RE 557.922/MG, Rel. Min. ELLEN GRACIE - RE 594.500/SP, Rel. Min. EROS GRAU, v.g.).

Conclui-se, portanto, que a pretensão recursal deduzida pelo Estado de São Paulo não tem o amparo da própria jurisprudência que o Supremo Tribunal Federal firmou em precedentes inteiramente aplicáveis ao caso ora em exame.

Sendo assim, e pelas razões expostas, conheço do presente recurso extraordinário, para negar-lhe provimento.

Publique-se.

Brasília, 05 de outubro de 2009.

(21º Aniversário da promulgação da Constituição democrática de 1988)

Ministro CELSO DE MELLO

Relator

* decisão publicada no DJE de 16.10.2009

Revista Jus Vigilantibus, Sabado, 12 de dezembro de 2009

sábado, 9 de outubro de 2010

COISAS DA VIDA NORMAL

COISAS DA VIDA NORMAL*
Autor: Léo Rosa de Andrade;



LÉO ROSA DE ANDRADE
Doutor em Direito pela UFSC. Psicólogo e Jornalista. Professor da Unisul.
Site: www.leorosa.com.br





A relação entre duas pessoas, o dia a dia de um casal forma cumplicidades, cria segredos, mostra por dentro, suprime inibições. Depois de algum tempo, segundo me contam, na vida íntima de um par quase tudo está exposto por um diante do outro. Não se trata de perder a vergonha. Parece que a vergonha acaba ficando sem sentido. Ora, vergonha é escrúpulo e falta de confiança em si, o que leva à repressão de grandes e pequenas vontades. O cotidiano vai dando jeito nessas coisas.





De fato, o cotidiano vai criando uma moralidade doméstica, com códigos compreensíveis pelo casal, e essa moralidade doméstica dilui a moralidade individual das partes que gozam de intimidade. As partes se sabem, com o que isso tem de bom e de mau. Já ouvi que entre a porta da sala e a da cozinha há mais segredos do que entre o céu e a terra. Esses segredos, claro, são para os de fora, que dentro de casa basta prestar atenção aos detalhes que uma parte saberá o que quiser e o que não quiser saber da outra. Os delicados jeitinhos ou as bardas de cada qual falam por si.





Cada parte está exposta à outra por muitas vezes, por muito tempo. A moral individual aberta é exposição plena. E mais do que a moral, de tanto se expor, expõe-se, também, a compostura dos modos. A correção de maneiras vai recebendo licenças, e não demora muito se vai abandonando a barriga, a depilação, a tampa do bacio, os gazes, o palavreado. Fica-se, e o que é pior, com licença de ficar, relaxado. O exibir o melhor de si transforma-se em desapreço esculachado. E não é menosprezo por alguma desafeição; é por quedar-se desatento, por esquecer-se de cuidar e de cuidar-se. É só descuido.





Não sou muito de conselhos, mas recomendei a uma menina amiga minha: vai viver com alguém? Mantenha o nível. Se gerar uma expectativa alta, trate de manter o estado de coexistência elevado. A vulgarização do comportamento no contubérnio devasta a sensação do belo, do clima amoroso, da graça de conviver. É a estética do desapaixonado, inclusive por si próprio. Se o olhar-se no espelho já não acorda Narciso, não acorda mais nada. Ninguém se interessa pelo olhar do outro se não se interessa, antes, por olhar-se a si. Quero que o outro aprecie o que eu aprecio em mim.





Um conhecido contou-me um causo sobre intimidade e apreciação: o casal já não se curtia. Ele não fazia mais a barba do rosto que ela gostava de alisar; ela não fazia os pelos da perna que ele gostava de afagar. Ninguém mais passeava a mão pelo corpo de mais ninguém. A coisa ia de ruim para pior. Perdurava o silêncio, a televisão ainda salvava a situação. O problema agravou-se exatamente por causa disso, a televisão. O filme tinha rapazes bonitos e cenas carinhosas. Havia sexo. Ela, por qualquer razão, tomou-se de vontade de namorar.





A transa ia boa, mas, aí, o rosto dela: olhos fechados e um sorriso gostoso que há tempos não era assim. Não parou enquanto pensava, mas não dava para não pensar: não era com ele. Ela não estava com ele. Ele conhecia bem, sabia que aquele jeito entregue, sem pressa, era qualquer coisa que não era transar com ele. Para, não para, falou: abra os olhos. Ela nem se mexeu; ou não ouviu, ou não entendeu, ou não quis entender. Repetiu. Ela olhou, mas não desmanchou o sorriso. Ele foi macho: ou é comigo, ou não é com ninguém. Fica de olho aberto, tem que me ver. Ela ficou, mas pensou em quem quis, olhando para o teto. Dizem que, um com o outro, foi a última vez.

domingo, 3 de outubro de 2010

Gilmar Mendes será denunciado na ONU por telefonema de Serra

Gilmar Mendes será denunciado na ONU por telefonema de Serra

Para as entidades que subscrevem a denúncia, o caso apresenta indícios claros de interferência política nas decisões do Supremo. "Um juiz da mais alta Corte do País não pode receber telefonemas de uma das partes interessadas no meio do julgamento. Pediremos que as Nações Unidas avaliem o caso e cobrem providências do governo brasileiro, para que se faça uma investigação criteriosa dos fatos, inclusive com a quebra judicial do sigilo telefônico se for o caso", afirma a advogada Andressa Caldas, diretora da Justiça Global.

Rodrigo Martins - CartaCapital

Da revista Carta Capital

O suposto telefonema do presidenciável José Serra (PSDB) ao ministro Gilmar Mendes, durante uma audiência no Supremo Tribunal Federal (STF), levou a ONG Justiça Global e uma série de outras organizações de direitos humanos a encaminhar uma denúncia para as Nações Unidas, devido às suspeitas de falta de independência do magistrado. A ligação telefônica, segundo reportagem da Folha de S.Paulo, teria ocorrido na quarta-feira 29, durante o julgamento de recurso do PT contra a obrigatoriedade de o eleitor portar dois documentos no dia da votação.

O recurso já havia sido acolhido por sete dos atuais dez ministros da Corte (Eros Grau se aposentou e ainda não foi substituído) quando Mendes decidiu pedir vistas do processo. No dia seguinte, votou contra a requisição petista. De toda maneira, a votação terminou em oito votos favoráveis e dois contra. E, agora, o eleitor pode se apresentar no pleito com qualquer documento de identificação oficial com foto. Vitória do PT, que temia que os eleitores de baixa renda e escolaridade deixassem de votar em função da exigência de dois documentos.

Para as entidades que subscrevem a denúncia, o caso apresenta indícios claros de interferência política nas decisões do Supremo. "Um juiz da mais alta Corte do País não pode receber telefonemas de uma das partes interessadas no meio do julgamento. Pediremos que as Nações Unidas avaliem o caso e cobrem providências do governo brasileiro, para que se faça uma investigação criteriosa dos fatos, inclusive com a quebra judicial do sigilo telefônico se for o caso", afirma a advogada Andressa Caldas, diretora da Justiça Global.

De acordo com ela, o documento deverá ser encaminhado na tarde desta sexta-feira à brasileira Gabriela Carina de Albuquerque da Silva, relatora especial da ONU sobre a independência de juízes e advogados, e ao Alto Comissariado das Nações Unidas. "Normalmente, encaminhamos esse tipo de denúncia apenas à relatoria da ONU, mas como a titular do cargo é brasileira talvez ela se sinta impedida de avaliar o caso". Razões para isso não faltam, afinal Gabriela foi assessora de Mendes na época em que ele era presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Andressa ressalta ainda que o ministro Gilmar Mendes, ex-advogado geral da União no governo Fernando Henrique Cardoso, foi acusado outras vezes de atuar de forma parcial no Supremo. "Em diversos casos, o magistrado se pronunciou antes de avaliar os autos do processo e emitiu opiniões contestáveis, por exemplo, ao criminalizar a atuação de movimentos sociais, como o MST", afirma a advogada. "É por isso que está tomando corpo um movimento pelo impeachment de Mendes. Não temos posição firmada a esse respeito, mas consideramos que esse caso do suposto telefonema de Serra ao ministro, durante o julgamento de um recurso apresentado pelo partido de sua principal oponente nas eleições, deve ser criteriosamente investigado. E, caso se comprove a falta de autonomia, o magistrado precisa ser punido".

Entre as entidades que subscrevem a denúncia, estão a Rede Nacional de Advogados Populares (Renap), o instituto Ibase e a ONG Terra de Direitos. Além de reportar o caso do telefonema de Serra, o documento enumera outros deslizes do ministro e expõe sua estreita relação com políticos ligados ao PSDB.

Editorial Estadão

Editorial que retrata bem a realidade carcerária nacional.

Prisões superlotadas

No último levantamento estatístico do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), chama a atenção o crescimento vertiginoso da população carcerária. Nos últimos cinco anos, o número de presos cresceu 37%. Com um total de 494.598 pessoas encarceradas, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo. Só fica atrás dos Estados Unidos, que têm 2.297.400 presos, e da China, com 1.629.000.

Dos 494.598 presos no Brasil, 56% já foram condenados e estão cumprindo pena e 44% são presos provisórios, que aguardam o julgamento de seus processos. O crescimento da população carcerária mostra que as polícias civil e militar têm sido mais eficientes no combate à criminalidade, o que resulta no aumento do número de condenados pela Justiça. Esse é o lado positivo do levantamento do CNJ. O problema é que, apesar da construção de novos estabelecimentos penais pela União e pelos governos estaduais, o sistema prisional continua abarrotado e não tem como receber mais presos. Esse é o aspecto mais sombrio do quadro exibido pela pesquisa.

A taxa média de ocupação do sistema prisional é de 1,65 preso por vaga. Na América Latina, o Brasil só perde, nesse item, para a Bolívia, que tem uma taxa de 1,66. Ou seja, há mais gente presa do que o número de vagas nas penitenciárias e cadeiões. Por isso, 57.195 pessoas estão cumprindo pena em delegacias, cujas carceragens não contam com infraestrutura adequada. Uma das metas estabelecidas pelo CNJ para as Justiças estaduais e federal, em 2010, é reduzir a zero o número de presos em delegacias. O levantamento estatístico mostra que a meta não será cumprida.

Segundo as estimativas do Departamento Penitenciário do Ministério da Justiça, o déficit no sistema prisional hoje é superior a 170 mil vagas. Além disso, há cerca de 500 mil mandados de prisão expedidos pela Justiça, mas não cumpridos. A falta de vagas e a superlotação dos estabelecimentos penais, decorrente do significativo aumento do número de pessoas condenadas pela Justiça, estão entre os principais fatores responsáveis pelo alto índice de reincidência criminal no País. Em alguns Estados, segundo estudos do Conselho Nacional de Política Criminal, 70% dos presos que deixam a prisão voltam a delinquir - na Europa e nos Estados Unidos a taxa média de reincidência é de 16%.

A crise do sistema prisional foi agravada nos últimos anos pelas mudanças ocorridas no perfil da criminalidade. Segundo o levantamento do CNJ, entre 2000 e 2010, o número de presos envolvidos com tráfico de drogas pulou de 9% para 22% da população carcerária (entre as mulheres, o aumento foi de 60%). Isso ocorreu porque, em decorrência da expansão do narcotráfico, em 2006 o Congresso aumentou o rigor da legislação penal, elevando a pena mínima de três para cinco anos de reclusão para os traficantes e limitando a concessão de liberdade provisória.

A conjugação de sanções mais severas e menos benefícios agravou o problema da superlotação do sistema prisional. Ele é tão grave que o Brasil responde a várias denúncias nos órgãos que compõem o Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos. As penitenciárias de Rondônia, que estão entre as mais abarrotadas do País e onde têm ocorrido sangrentas rebeliões, já foram denunciadas à Comissão de Direitos Humanos da OEA. Também há processos abertos contra o Estado brasileiro por causa de maus-tratos de presos em prisões do Espírito Santo, que tramitam na Corte Interamericana de Direitos Humanos, em San José, na Costa Rica.

Para desafogar as prisões, funcionários do Executivo vêm estimulando os juízes criminais a reduzir o número de prisões provisórias, a aplicar penas alternativas e a permitir o monitoramento de presos de baixa periculosidade por meio de tornozeleiras eletrônicas. Mas, como lembra Luciano Losekann, do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do CNJ, para que essas medidas sejam eficazes é preciso uma política penitenciária articulada que envolva a União, os Estados e o Judiciário.