quinta-feira, 24 de outubro de 2013

STJ- "gato" e trancamento da ação penal - analogia ao art. 34 da Lei 9.249/95

DECISÃO
Ressarcimento antes da denúncia leva Quinta Turma a trancar ação penal por furto de energia
Por maioria de votos, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) trancou ação penal contra uma mulher acusada de furto de energia elétrica – delito popularmente conhecido como “gato” –, porque ela já havia pago o débito com a concessionária antes da denúncia. Os ministros aplicaram, por analogia, a regra válida para os crimes tributários, nos quais é admitida a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo.

Diz o artigo 34 da Lei 9.249/95: “Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia.”

O furto durou aproximadamente dois anos e foi descoberto por um funcionário da concessionária de energia elétrica, durante inspeção de rotina. Após notificação, a moradora compareceu à empresa, fez acordo para parcelar o valor devido (R$ 3.320,86) e quitou a obrigação.

Apesar da solução administrativa, o Ministério Público propôs ação penal contra a moradora, com base no artigo 155, parágrafo 3º, do Código Penal. O artigo trata de furto (“subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”) e o parágrafo 3º equipara a coisa móvel “energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico”. A pena é de um a quatro anos de reclusão, além de multa.

Recebida a denúncia, o Ministério Público propôs a suspensão condicional do processo, que foi aceita.

Sem justa causa

A defesa impetrou habeas corpus no Tribunal de Justiça de Sergipe (TJSE), com pedido de trancamento da ação. Alegou a ocorrência de constrangimento ilegal, sob o argumento de que não haveria justa causa para a persecução penal, já que o pagamento do valor devido foi feito antes da instauração da ação, mas a ordem foi denegada.

Para o tribunal, o trancamento da ação penal por falta de justa causa, por meio de habeas corpus, só se justifica quando o fato é atípico ou não existe elemento indiciário demonstrativo da autoria, ou ainda, quando fica evidente alguma causa excludente de ilicitude.

Sobre a quitação da dívida, o TJSE afirmou que, como o artigo 34 da Lei 9.249 diz respeito a débitos tributários e previdenciários, sua aplicação ao furto de energia não seria possível.

Analogia

No STJ, o ministro Jorge Mussi, relator, teve entendimento diferente. Para ele, a natureza do crime em questão exige aplicação analógica da regra válida para os delitos praticados contra a ordem tributária, nos quais se admite a extinção da punibilidade se o pagamento do tributo ocorrer antes do recebimento da denúncia.

“Não se desconhece que, de acordo com o ordenamento jurídico vigente, a devolução ou a restituição do bem furtado antes do recebimento da denúncia não é causa extintiva da punibilidade, podendo ensejar apenas a redução da reprimenda a ser imposta ao acusado”, comentou o ministro, citando o artigo 16 do Código Penal.

No entanto, segundo ele, como o “gato” de energia elétrica é delito patrimonial cometido em prejuízo de concessionária de serviço público, a solução do caso deve ser semelhante à que se dá aos crimes contra a ordem tributária.

Isonomia

“Embora o valor estipulado como contraprestação de serviços públicos essenciais – como a energia elétrica e a água, por exemplo – não seja tributo, possui ele a natureza jurídica de preço público, já que cobrado por concessionárias de serviços públicos, as quais se assemelham aos próprios entes públicos concedentes”, explicou o relator.

“Se o pagamento do tributo antes do oferecimento da denúncia enseja a extinção da punibilidade nos crimes contra a ordem tributária, o mesmo entendimento deve ser adotado quando há o pagamento do preço público referente à energia elétrica subtraída, sob pena de violação ao princípio da isonomia”, acrescentou.

O voto do relator, pelo trancamento da ação, foi acompanhado pelos ministros Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro.

Divergência

A ministra Regina Helena Costa apresentou voto divergente, mas ficou vencida. Segundo ela, a legislação admite a extinção da punibilidade pelo pagamento apenas no caso de tributos e contribuições sociais, o que não alcança a remuneração pelo fornecimento de energia elétrica, cuja natureza é de tarifa ou preço público – portanto, sem caráter tributário.

No caso dos crimes contra a ordem tributária, assinalou a ministra, o interesse na arrecadação tem levado o estado a determinar a extinção da punibilidade pelo pagamento ou parcelamento do tributo. Já os crimes contra o patrimônio “recebem tratamento mais rigoroso por parte do estado, por questões de política criminal, de modo que a reparação do prejuízo não atinge o fim colimado pela edição do tipo penal”.

“Se o legislador quisesse criar nova hipótese de extinção da punibilidade para crimes contra o patrimônio, certamente o teria feito de forma expressa. A aplicação de uma causa extintiva, além do âmbito demarcado expressamente pela lei, a meu ver, vulnera o princípio da isonomia, ao invés de efetivá-lo”, acrescentou Regina Helena Costa. Seu voto foi acompanhado pela ministra Laurita Vaz.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

INFORMATIVO N. 525 DO STJ

Quinta Turma

DIREITO PROCESSUAL PENAL. COMPETÊNCIA PARA PROCESSAR E JULGAR AÇÃO PENAL REFERENTE A SUPOSTO CRIME DE AMEAÇA PRATICADO POR NORA CONTRA SUA SOGRA.

É do juizado especial criminal — e não do juizado de violência doméstica e familiar contra a mulher — a competência para processar e julgar ação penal referente a suposto crime de ameaça (art. 147 do CP) praticado por nora contra sua sogra na hipótese em que não estejam presentes os requisitos cumulativos de relação íntima de afeto, motivação de gênero e situação de vulnerabilidade. Isso porque, para a incidência da Lei 11.340/2006, exige-se a presença concomitante desses requisitos. De fato, se assim não fosse, qualquer delito que envolvesse relação entre parentes poderia dar ensejo à aplicação da referida lei. Nesse contexto, deve ser conferida interpretação restritiva ao conceito de violência doméstica e familiar, para que se não inviabilize a aplicação da norma. HC 175.816-RS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 20/6/2013.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Informativo 519 - Terceira Seção do STJ

DIREITO PENAL. PROGRESSÃO DE REGIME NO TRÁFICO DE DROGAS. RECURSO REPETIVO (ART. 543-C DO CPC E RES. 8/2008-STJ).

A partir da vigência da Lei 11.464/2007, que modificou o art. 2º, § 2º, da Lei 8.072/1990, exige-se o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente, para a progressão de regime no caso de condenação por tráfico de drogas, ainda que aplicada a causa de diminuição prevista no art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006. O art. 2º da Lei 8.072/1990 equiparou o delito de tráfico de entorpecentes aos crimes hediondos, dispondo, no § 2º do mesmo artigo, que a progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos no caput, somente poderá ocorrer após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente. Por sua vez, o tipo penal do tráfico de drogas está capitulado no art. 33 da Lei 11.343/2006, que, em seu § 4º, estabelece que as penas poderão ser reduzidas de 1/6 a 2/3, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa. Constata-se, de plano, da leitura desses dispositivos, que o art. 2º, § 2º, da Lei 8.072/1990 não excluiu de seu rol o tráfico de drogas quando houver a aplicação da minorante do art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006. Se assim o quisesse, poderia o legislador tê-lo feito, uma vez que a redação atual do dispositivo, conferida pela Lei 11.464/2007, é posterior à vigência da Lei 11.343/2006. Outrossim, observa-se que a causa de diminuição de pena do art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006 elenca, como requisitos necessários para a sua aplicação, circunstâncias inerentes não à conduta praticada pelo agente, mas à sua pessoa — primariedade, bons antecedentes, não dedicação a atividades criminosas e não integração de organização criminosa. Dessa forma, a aplicação da causa de diminuição de pena prevista no art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006 não afasta a hediondez do crime de tráfico de drogas, pois a sua incidência não decorre do reconhecimento de uma menor gravidade da conduta praticada e tampouco da existência de uma figura privilegiada do crime. A criação da minorante tem suas raízes em questões de política criminal, surgindo como um favor legislativo ao pequeno traficante, ainda não envolvido em maior profundidade com o mundo criminoso, de forma a lhe propiciar uma oportunidade mais rápida de ressocialização. Precedentes citados do STF: AgRg no HC 114.452-RS, Primeira Turma, DJe 8/11/2012; do STJ: HC 224.038-MG, Sexta Turma, DJe 27/11/2012, e HC 254.139-MG, Quinta Turma, DJe 23/11/2012. REsp 1.329.088-RS, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 13/3/2013.

Informativo 520 doSTJ

Quinta Turma

DIREITO PENAL. NÃO CARACTERIZAÇÃO DE BIS IN IDEM NO CASO DE APLICAÇÃO DE CAUSA DE AUMENTO DE PENA REFERENTE AO DESCUMPRIMENTO DE REGRA TÉCNICA NO EXERCÍCIO DA PROFISSÃO.

É possível a aplicação da causa de aumento de pena prevista no art. 121, § 4º, do CP no caso de homicídio culposo cometido por médico e decorrente do descumprimento de regra técnica no exercício da profissão. Nessa situação, não há que se falar em bis in idem. Isso porque o legislador, ao estabelecer a circunstância especial de aumento de pena prevista no referido dispositivo legal, pretendeu reconhecer maior reprovabilidade à conduta do profissional que, embora tenha o necessário conhecimento para o exercício de sua ocupação, não o utilize adequadamente, produzindo o evento criminoso de forma culposa, sem a devida observância das regras técnicas de sua profissão. De fato, caso se entendesse caracterizado o bis in idem na situação, ter-se-ia que concluir que essa majorante somente poderia ser aplicada se o agente, ao cometer a infração, incidisse em pelo menos duas ações ou omissões imprudentes ou negligentes, uma para configurar a culpa e a outra para a majorante, o que não seria condizente com a pretensão legal. Precedente citado do STJ: HC 63.929-RJ, Quinta Turma, DJe 9/4/2007. Precedente citado do STF: HC 86.969-6-RS, Segunda Turma, DJ 24/2/2006. HC 181.847-MS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Rel. para acórdão Min. Campos Marques (Desembargador convocado do TJ/PR), julgado em 4/4/2013.


DIREITO PENAL. REQUISITOS PARA A CONCESSÃO DE PRISÃO DOMICILIAR.

A superlotação carcerária e a precariedade das condições da casa de albergado não são justificativas suficientes para autorizar o deferimento de pedido de prisão domiciliar. De fato, conforme o art. 117 da LEP, somente se admitirá o recolhimento do beneficiário de regime aberto em residência particular quando se tratar de condenado maior de 70 (setenta) anos, condenado acometido de doença grave, condenada com filho menor ou deficiente físico ou mental, ou condenada gestante. Além disso, cumpre ressaltar que, excepcionalmente, quando o sentenciado se encontrar cumprindo pena em estabelecimento destinado a regime mais gravoso, por inexistência de vagas no regime adequado, admite-se, provisoriamente, a concessão da prisão domiciliar. Dessa forma, não se enquadrando a situação analisada em nenhuma das hipóteses descritas, não é cabível a concessão da prisão domiciliar. Precedentes citados: AgRg no HC 258.638-RS, Quinta Turma, DJe 1º/3/2013; e HC 153.498-RS, Quinta Turma, DJe 26/4/2010. HC 240.715-RS, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 23/4/2013.


Sexta Turma

DIREITO PENAL. APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NA HIPÓTESE DE ACUSADO REINCIDENTE OU PORTADOR DE MAUS ANTECEDENTES.

Ainda que se trate de acusado reincidente ou portador de maus antecedentes, deve ser aplicado o princípio da insignificância no caso em que a conduta apurada esteja restrita à subtração de 11 latas de leite em pó avaliadas em R$ 76,89 pertencentes a determinado estabelecimento comercial. Nessa situação, o fato, apesar de se adequar formalmente ao tipo penal de furto, é atípico sob o aspecto material, inexistindo, assim, relevância jurídica apta a justificar a intervenção do direito penal. HC 250.122-MG, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 2/4/2013.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS na FSP

Esclarecedor o texto do eminente jurista acerca da PEC 37 na Folha de SP (7.VI.2013).
Rafael S. de Faria.

Para esclarecer o óbvio


O Ministério Público ser parte (acusação) e juiz (condutor da investigação) no inquérito policial é reduzir a ampla defesa à sua expressão nenhuma


A meu ver, não haveria necessidade de um projeto de emenda constitucional para assegurar aos delegados de polícia a exclusividade para presidir os inquéritos policiais.


Já a têm na Constituição Federal, pois o § 4º do artigo 144 está assim redigido: "Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de Polícia Judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares".


O Ministério Público não é polícia judiciária. Tem o direito de requisitar às autoridades policiais diligências investigatórias (artigo 129, inciso VIII), assim como a instauração de inquérito policial aos delegados, que, todavia, serão aqueles que os instaurarão.


O exercício do controle externo da atividade policial (inciso VII do artigo 130) de rigor é controle semelhante ao que exerce sobre todos os poderes públicos (inciso II), para que não haja desvios de conduta.


Não há que confundir a relevante função de defesa da sociedade e de zelar pelo bom funcionamento das instituições com aquela de dirigir um inquérito, que é função exclusiva da Polícia Judiciária.


À evidência, com o direito de requisição, o Ministério Público pode pedir aos delegados todas as investigações de que precisar, como também o tem o advogado de defesa, que se coloca no inquérito judicial no mesmo plano do Ministério Público. Não sem razão, o constituinte definiu a advocacia e o Ministério Público como "funções essenciais à administração de Justiça" (artigos 127 a 135).


O direito de defesa, a ser exercido pelo advogado, é o mais sagrado direito de uma democracia, direito este inexistente nas ditaduras. Não sem razão, também, o constituinte colocou no inciso LV do art. 5º, como cláusula pétrea, que aos acusados é assegurada a "ampla defesa administrativa e judicial", sendo o adjetivo "ampla" de uma densidade vocabular inquestionável.


Permitir ao Ministério Público que seja, no inquérito policial, parte (acusação) e juiz (condutor da investigação) ao mesmo tempo é reduzir a "ampla defesa" constitucional à sua expressão nenhuma. Se o magistrado, na dúvida, deve absolver (in dubio pro reo), o Ministério Público, na dúvida, deve acusar para ver se durante o processo as suas suspeitas são consistentes.


Pelo texto constitucional, portanto, não haveria necessidade de um projeto para explicar o que já está na Constituição. Foi porque, todavia, nos últimos tempos, houve invasões nas competências próprias dos delegados que se propôs um projeto de emenda constitucional para que o óbvio ficasse "incontestavelmente óbvio".


Eis por que juristas da expressão do presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, Ivan Sartori, do presidente do Comissão de Ética Pública da Presidência da República, Américo Lacombe, de Márcio Thomaz Bastos, Vicente Greco Filho, José Afonso da Silva, José Roberto Batocchio, Luiz Flávio D'Urso e Marcos da Costa colocaram-se a favor da PEC 37.


Com todo o respeito aos eminentes membros do parquet, parece-me que deveriam concentrar-se nas suas relevantes funções, que já não são poucas nem pequenas.


Uma última observação. Num debate de nível, como o que se coloca a respeito da matéria, não me parece que agiu bem o Ministério Público quando intitulou a PEC 37 de "PEC da corrupção e da impunidade", como se todos os membros do Ministério Público fossem incorruptíveis e todos os delegados, corruptos.


Argumento dessa natureza não engrandece a instituição, visto que a Constituição lhe outorgou função essencial, particularmente necessária ao equilíbrio dos Poderes, como o tem a advocacia e o Poder Judiciário, em cujo tripé se fundamenta o ideal de justiça na República brasileira.


IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, 78, advogado, é professor emérito da Universidade Mackenzie, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Informativo 0519 - STJ

Quinta Turma
DIREITO PROCESSUAL PENAL. INOCORRÊNCIA DE FALTA GRAVE PELA POSSE DE UM CABO USB, UM FONE DE OUVIDO E UM MICROFONE POR VISITANTE DE PRESO.
No âmbito da execução penal, não configura falta grave a posse, em estabelecimento prisional, de um cabo USB, um fone de ouvido e um microfone por visitante de preso. Primeiramente, os referidos componentes eletrônicos não se amoldam às hipóteses previstas no art. 50, VII, da Lei 7.210/1984 porque, embora sejam considerados acessórios eletrônicos, não são essenciais ao funcionamento de aparelho de telefonia celular ou de rádio de comunicação e, por isso, não se enquadram na finalidade da norma proibitiva que é a de impedir a comunicação intra e extramuros. Além disso, também não há como falar em configuração de falta grave, pois a conduta praticada por visitante não pode alcançar a pessoa do preso, tendo em vista que os componentes eletrônicos não foram apreendidos com o detento, mas com seu visitante. HC 255.569-SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 21/3/2013.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

No meio do caminho tinha um livro, por João Marcos Buch*

No meio do caminho tinha um livro, por João Marcos Buch*

Audiência na qual o réu, jovem de 20 anos, é julgado por roubo de celular, contra dois adolescentes que iam embora após o colégio. O réu confessa, diz estar arrependido e quer fazer tratamento para dependência de crack, pois quando dos assaltos tinha usado todo o dinheiro de seu serviço de servente com droga. Terminada a audiência, termos assinados... – Posso ficar com uma cópia deste termo? – pergunta o réu. – Mas por quê? – questiona o juiz. – É apenas um termo de deliberação. – O juiz prepara-se para voltar ao gabinete. – É porque já li tudo que minha família me mandou lá na cadeia e pelo menos é algo mais para eu ler. – A linguagem do preso era em perfeito português. O juiz faz meia-volta, resolve ir adiante na conversa. – Qual o último livro que você leu? – “Comédias da Vida Privada”, do Luis Fernando Verissimo – responde o réu de pronto. – Gostou? – insiste o juiz. – Muito, é muito engraçado – rdealmente o réu era um bom leitor, concluiu o juiz. – Espere um pouco, vou ver se tenho algum livro para te emprestar.

No gabinete, vasculha as prateleiras, acha o “Xangô de Baker Street”, do Jô Soares, lido tempos atrás e perdido entre seus livros jurídicos. Volta à sala de audiências. – Serve este? – Poxa, doutor, do Jô Soares. Claro que sim. Muito obrigado. Não vejo a hora de chegar no presídio para começar a ler.

O caso acima, verídico, serve para ilustrar a importância de, ao lado do trabalho, possibilitar-se a leitura de obras literárias a pessoas que estão presas. Qualquer um, ao ler um livro reflete, identifica-se ou não com o tema e os personagens, questiona, pensa.

Pela leitura, a pessoa desenvolve a empatia e, consequentemente, compreende melhor a sua própria vida. E se isso contribui para a educação, então, é claro que o hábito da leitura é mais uma forma de resgate ético, de contribuição para a harmônica integração social do detento no dia em que retornar à liberdade. Wittgenstein, filósofo do século 20, dizia que o universo de um homem é medido pelo tamanho de seu vocabulário. No caso acima descrito, o jovem preso tinha consciência de que havia prejudicado outros adolescentes, sabia que teria que pagar por isso e compreendia como tinha chegado até aquele ponto na vida, apontando inclusive um caminho para tentar sair da vida marginal. Essa compreensão ele conseguiu com a leitura, estou certo.

Por isso, a partir de 1º de maio, os reeducandos do complexo prisional de Joinville passarão a ter a possibilidade de ler, num prazo de 20 dias, uma obra da literatura clássica, com mais dez dias para apresentar um resumo do livro. Assim poderão abater quatro dias de pena. É o que consta da portaria nº 8/2013 da Vara de Execuções Penais da Comarca de Joinville. – Tenha uma boa leitura rapaz – disse o juiz, despedindo-se do réu. – Terei, sim. Depois de ler, vou passar para a frente. Posso? – Um livro é para ser lido. Mande adiante. E lá foi o réu, de volta para o presídio, escoltado, livre.

*Juiz de direito da Vara de Execuções Penais e corregedor do sistema prisional da Comarca de Joinville e membro da Associação Juízes para a Democracia

terça-feira, 26 de março de 2013

STJ e confissão

ESPECIAL Assumindo os próprios erros: a importância da confissão espontânea no processo penal Reconhecer a autoria do crime é atitude de especial relevância para o Judiciário. O réu pode contar com a atenuante da pena e colaborar com as investigações em curso. Pode contribuir ainda com um julgamento mais célere e com a verdade dos fatos. Mas em que circunstâncias a admissão do crime implica realmente benefício para o culpado e qual a posição do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre o assunto? O artigo 65, inciso III, alínea d, do Código Penal dispõe que a confissão espontânea de autoria do crime é circunstância que atenua a pena. Assim, aqueles que, em tese, admitirem a autoria do fato em presença de uma autoridade terá como prêmio uma pena mais branda. O primeiro elemento exigido pela lei, então, é a confissão ser voluntária; a segunda é que seja em presença de autoridade. A autoridade pode ser tanto o delegado de polícia, o magistrado ou o representante do Ministério Público. É entendimento do STJ que não cabe ao magistrado fazer especulações sobre os motivos que conduziram o réu a admitir a culpa. A jurisprudência dispõe que a confissão, prevista no texto da lei, é de caráter meramente objetivo. Isso significa que o acusado não precisa apresentar motivação específica ou qualquer outro requisito subjetivo para sua caracterização (HC 129.278). Arrependimento O STJ entende que pouco importa o arrependimento ou a existência de interesse pessoal do réu ao admitir a culpa. A atenuante tem função objetiva e pragmática de colaborar com a verdade, facilitando a atuação do Poder Judiciário. “A confissão espontânea hoje é de caráter meramente objetivo, não fazendo a lei referência a motivos ou circunstâncias que a determinaram,” assinalou o ministro Paulo Gallotti, ao apreciar um habeas corpus de Mato Grosso do Sul (HC 22.927). É entendimento também do STJ de que não importa se o réu assumiu parcial ou totalmente o crime ou mesmo se houve retratação posterior. “Se a confissão na fase inquisitorial, posteriormente retratada em juízo, alicerçou o decreto condenatório, é de ser reconhecido o benefício da atenuante do artigo 65, III, alínea d, do CP”, assinalou a ministra Laurita Vaz em um de seus julgados. (HC 186.375). “A confissão, realizada diante de autoridade policial quanto a um delito de roubo, mesmo que posteriormente retratada em juízo, é suficiente para incidir a atenuante quando expressamente utilizada para a formação do convencimento do julgador”, assinalou o ministro Jorge Mussi em um julgado. Segundo ele, pouco importa se a admissão da prática do ilícito foi espontânea ou não, integral ou parcial (HC 217.687). Os magistrados entendem que a lei não faz ressalva em relação à maneira como o agente pronunciou a confissão. A única exigência legal, segundo a Corte, é que essa atenuante seja levada em consideração pelo magistrado quando da fixação da pena (HC 479.50). Mesmo havendo retratação em juízo, segundo o STJ, se o magistrado usar da confissão retratada como base para o reconhecimento da autoria do crime, essa circunstância deve ser levada em consideração no momento da dosimetria da pena (HC 107.310). Confissão qualificada O STJ tem se posicionado no sentido de que não cabe a atenuante em casos de confissão qualificada – aquela em que o acusado admite a autoria, mas alega ter sido acobertado por causa excludente da ilicitude. É o caso de um réu confessar o crime, mas alegar que agiu em legítima defesa. Isso porque, segundo uma decisão da Sexta Turma, nesses casos, o acusado não estaria propriamente colaborando para a elucidação do crime, mas agindo no exercício de autodefesa (REsp 999.783). Na análise de um habeas corpus oriundo do Rio Grande do Sul, a Quinta Turma reiterou o entendimento de que a confissão qualificada não acarreta o reconhecimento da atenuante. No caso, um réu atirou em policiais quando da ordem de prisão, mas não admitiu o dolo, alegando legítima defesa (HC 129.278). “A confissão qualificada, na qual o agente agrega à confissão teses defensivas descriminantes ou exculpantes, não tem o condão de ensejar o reconhecimento da atenuante prevista no artigo 65, inciso III, alínea d, do Código Penal”, sustentou a ministra Laurita Vaz, na ocasião do julgamento. A versão dos fatos apresentada pelo réu não foi utilizada para embasar sua condenação. Personalidade do réu A atenuante da confissão, segundo decisões de alguns ministros, tem estreita relação com a personalidade do agente. Aquele que assume o erro praticado, de forma espontânea – ou a autoria de crime que era ignorado ou atribuído a outro – denota possuir sentimentos morais que o diferenciam dos demais. É no que acredita a desembargadora Jane Silva, que atuou em Turma criminal no STJ, defendendo a seguinte posição: “Penso que aquele que confessa o crime tem um atributo especial na sua personalidade”, defendeu ela, “pois ou quer evitar que um inocente seja castigado de forma não merecida ou se arrependeu sinceramente”. E, mesmo não se arrependendo, segundo a desembargadora, o réu merece atenuação da pena, pois reconhece a ação da Justiça – “à qual se sujeita”, colaborando com ela. A desembargadora definiu a personalidade como conjunto de atributos que cada indivíduo tem e desenvolve ao longo da vida até atingir a maturidade; diferentemente do caráter, que, segundo ela, é mutável. Dessa forma, o réu que confessa espontaneamente o crime "revela uma personalidade tendente à ressocialização, pois demonstra que é capaz de assumir a prática de seus atos, ainda que tal confissão, às vezes, resulte em seu prejuízo, bem como se mostra capaz de assumir as consequências que o ato criminoso gerou, facilitando a execução da pena que lhe é imposta” (REsp 1.012.187). Reincidência No Brasil, conforme previsão do artigo 68 do Código Penal, o juiz, no momento de estabelecer a pena de prisão, adota o chamado sistema trifásico, em que primeiro define a pena-base (com fundamento nos dados elementares do artigo 59: culpabilidade, antecedentes, motivação, consequências etc.), depois faz incidir as circunstâncias agravantes e atenuantes (artigos 61 a 66) e, por último, leva em conta as causas de aumento ou de diminuição da pena. A Terceira Seção decidiu em maio do ano passado, por maioria de votos, que, na dosimetria da pena, devem ser compensadas a atenuante da confissão espontânea e a agravante da reincidência, por serem igualmente preponderantes. A questão consistia em definir se a agravante da reincidência teria maior relevo ou se equivalia à atenuante da confissão. A solução foi dada com o voto de desempate da ministra Maria Thereza de Assis Moura (EREsp 1.154.752) Segundo explicação do desembargador convocado Adilson Macabu, proferida no curso do julgamento, o artigo 65 do Código Penal prevê as circunstâncias favoráveis que sempre atenuam a pena, sem qualquer ressalva, e, em seguida, o artigo 67 determina uma agravante que prepondera sobre as atenuantes. Os ministros consideraram na ocasião do julgamento da Terceira Seção que, se a reincidência sempre preponderasse sobre a confissão, seria mais vantajoso ao acusado não confessar o crime e, portanto, não auxiliar a Justiça. O entendimento consolidado na ocasião é que a confissão revela traço da personalidade do agente, indicando o seu arrependimento e o desejo de emenda. Assim, nos termos do artigo 67 do CP, o peso entre a confissão – que diz respeito à personalidade do agente – e a reincidência – expressamente prevista no referido artigo como circunstância preponderante – deve ser o mesmo. Daí a possibilidade de compensação. Autoincriminação No julgamento de um habeas corpus em que aplicou a tese firmada pela Terceira Seção, o desembargador Adilson Macabu considerou que a confissão acarreta “economia e celeridade processuais pela dispensa da prática dos atos que possam ser considerados desnecessários ao deslinde da questão”. Também acrescentou que ela acarreta segurança material e jurídica ao conteúdo do julgado, pois a condenação reflete, de maneira inequívoca, a verdade real, buscada inexoravelmente pelo processo (HC 194.189). O magistrado destacou que a escolha do réu ao confessar a conduta “demonstra sua abdicação da proteção constitucional para praticar ato contrário ao seu interesse processual e criminal”, já que a Constituição garante ao acusado o direito ao silêncio e o direito de não se autoincriminar. “Por isso deve ser devidamente valorada e premiada como demonstração de personalidade voltada à assunção de suas responsabilidades penais”, concluiu Macabu. Condenação anterior No julgamento de um habeas corpus, contudo, a Quinta Turma do STJ adotou o entendimento de que, constatado que o réu possui condenação anterior por idêntico delito, geradora de reincidência, e que há uma segunda agravante reconhecida em seu desfavor (no caso, crime cometido contra maior de 60 anos), não há constrangimento ilegal na negativa de compensação das circunstâncias legais agravadoras com a atenuante da confissão espontânea (HC 183.791). Sobre o tema, o STJ tem entendimento de que a atenuante da confissão espontânea não reduz pena definida no mínimo legal, nem mesmo que seja de forma provisória. A matéria se enquadra na Súmula 231, do STJ. Flagrante Em relação à atenuante quando da ocorrência da prisão em flagrante ou quando há provas suficientes nos autos que possam antecipadamente comprovar a autoria, as Turmas criminais do STJ entendem que “a prisão em flagrante, por si só, não constitui fundamento suficiente para afastar a incidência da confissão espontânea”. Com isso, foi reformada a decisão proferida pela instância inferior (HC 68.010). Em um caso analisado pelo STJ, um réu foi flagrado transportando 6,04 quilos de cocaína e o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS), na análise de fixação da pena, não considerou a atenuante da confissão espontânea, ao argumento de que o réu foi preso em flagrante (REsp 816.375). Em outra decisão, sobre o mesmo tema, a Quinta Turma reiterou a posição de que “a confissão espontânea configura-se tão somente pelo reconhecimento do acusado em juízo da autoria do delito, pouco importando se o conjunto probatório é suficiente para demonstrá-la ou que o réu tenha se arrependido da infração que praticou” (HC 31.175).

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Do blog AJD/SC - Tortura no Presídio de Joinville ocorrida em janeiro de 2013

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013 Decisão do Juiz João Marcos Buch em razão das denúncias de tortura ocorrida no Presídio Regional de Joinville* Autos n° 038.13.002513-2 Ação: Outros/Outros Autor: Portaria 1/2013 Nós vos pedimos com insistência: Nunca digam - Isso é natural! Diante dos acontecimentos de cada dia, Numa época em que corre o sangue Em que o arbitrário tem força de lei, Em que a humanidade se desumaniza Não digam nunca: Isso é natural. Bertold Brecht I- Vistos. Lamentavelmente, no período em que este magistrado gozava de férias, bem como também gozava de férias o Gerente do Presídio Regional de Joinville (Cristiano), os fatos a seguir tratados acabaram acontecendo. Mas mesmo em férias, este magistrado acabou fazendo a necessária inspeção, comunicando o juiz substituto, cujo trabalho a frente dos feitos jurisdicionais é de exemplar proficuidade. A partir da inspeção, foi elaborada Portaria (fl.2). Nela as considerações e determinação foram as seguintes: CONSIDERANDO informação prévia a este Juízo sobre operação pente-fino no pavilhão 4 do Presídio Regional de Joinville pelo DEAP (e-mail anexo) em 18.01.2013; CONSIDERANDO efetivamente realizada a operação na data indicada; CONSIDERANDO que a partir 21.01.2013 este magistrado passou a receber denúncias, segundo os quais durante a operação teria havido abuso, maus tratos, provocações e, inclusive, lesões corporais contra os presos; CONSIDERANDO a inspeção pessoal deste juiz em 24.1.2013 na Galeria 4 do Presídio e a oitiva em conjunto dos detentos todos do Pavilhão 4, em contato direto no mesmo plano das celas com cerca de 180 detentos do Pavilhão 4, tendo deles todos ouvido que durante a operação do dia 18.01.2013 houve abuso, maus tratos, humilhação, provocações e lesões corporais, tudo por parte dos agentes contra os presos; CONSIDERANDO as cartas assinadas entregues a este juiz na ocasião, contendo elas afirmações detalhadas sobre os abusos sofridos (em anexo); CONSIDERANDO a constatação direta deste juiz de que os detentos R. L. S., E. S., M. S. J., V. S. N., M. M. e P. M. L. S. apresentavam lesões das mais diversas, em princípio por instrumentos pérfuro-corto-contusos; CONSIDERANDO que os problemas constatados de insalubridade e péssima higiene (ratos, baratas, possíveis focos de mosquitos transmissores da dengue, banheiros da área de visita com esgoto entupido) serão apurados em procedimento próprio, em portaria também instaurada, Na forma do art.66, VII, da LEP, DETERMINA: INSTAURE-SE, REGISTRANDO-SE E AUTUANDO-SE, PROCEDIMENTO PARA APURAÇÃO DE EVENTUAIS ABUSOS, MAUS TRATOS, DESRESPEITO E LESÕES CORPORAIS CONTRA OS DETENTOS. Cumprindo-se as deliberações, foram feitas as certidões sobre os autos de cada detento, encaminhadas cópias ao Conselho Carcerário de Joinville, ao Centro de Direitos Humanos, ao Ministério Público e à Corregedoria-Geral da Justiça/SC e juntados aos autos os exames de corpo de delito realizados nos reeducandos, bem como imagens de vídeos gravadas da operação. Determinou-se ainda a requisição da relação dos agentes que atuaram na operação, que ainda não chegou, bem como em tempo a inquirição dos detentos que sofreram as agressões. Considerando as imagens gravadas e os exames de corpo de delito juntados, este procedimento pode ser encerrado, haja vista que passa à esfera criminal e portanto deve ser encaminhado aos órgãos competentes, onde a relação dos referidos agentes deverá ser entregue e a inquirição de vítimas e indiciados deverá ser feita. De plano percebe-se que em princípio a operação pente-fino de 18.01.13 junto ao Presídio Regional de Joinville foi realizada exclusivamente por agentes do Deap. Pelos exames de corpo de delito constata-se que os detentos relacionados sofreram lesões corporais de energia de ordem mecânica – instrumento contundente, ou seja: - exame de fl.38: equimose amarelada de 5 cm no braço direito, equimose amarelada de 12 cm no braço esquerdo, equimose amarelada 2 cm e 3 cm no tórax anteriormente; - exame de fl.40: halo equimótico de 10 cm de diâmetro e com escoriação central em face anterior de coxa direita no seu terço distal; - exame de fl.41: Escoriação de 4 cm, sangrando, em porção superior posterior do seu tórax sobre o acrômio à direita; - exame de fl.42: três halos equimóticos circulares de 4 cm em face anterior de coxa direita no seu terço proximal; - exame de fl.43: escoriação plana extensa sangrando em face posterior de coxa esquerda no seu terço superior; - exame de fl.44: ferida contusa em perna direita, sangrando, e outras feridas menores escoriadas em face posterior de perna direita; escoriações recentes de 4 cm em nádega direita. Por outro lado, as imagens gravadas, especificamente no DVD 1, juntado à fl.32, aproximadamente nos horários das 8h55min, 9h21min, 9h34min, 11h23min e 11h28min falam por si. Nelas se percebe claramente agentes do Deap na área de banho de sol do Pavilhão 4, disparando à queima roupa armas ao que parece calibre 12 com munição não letal, bombas de efeito moral, gás de pimenta e também dando "voadoras" calçadas com botas e coturnos, tudo diretamente contra de detentos nus, sentados (dezenas) no chão de cimento, perfilados ombro a ombro, voltados para a parede, com as mãos na nuca, imóveis por mais de duas horas. São imagens graves. Resta saber o que pode ter havido dentro das galerias, nas celas, de onde não se obteve filmagens e de onde os detentos foram retirados. Neste ponto, esgotam-se as palavras. Este Juiz, membro de Poder, cuja prerrogativa constitucional irrenunciável é garantir e fazer valer os preceitos constitucionais, dentre os quais está a expressa vedação à tortura (art.5º, III, da CF - cláusula pétrea, de eternidade) cuja base foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos, não vai permitir que fatos grave como os que ocorreram passem por seus olhos sem tomar as providências sérias que a situação está a exigir. Diante do exposto: URGENTE: I.1- Na forma do art.66, VII, da LEP c/c art.5º, II, do CPP, requisites-e ao Delegado de Polícia da 8ª Delegacia de Polícia de Joinville, com cópia destes autos, incluindo os DVDs, a instauração de inquérito policial para apuração dos crimes de lesão corporal, abuso de autoridade, disparo de arma e tortura, independentemente de outros que venha a averiguar, sem prejuízo de eventual representação de prisão preventiva ou medida cautelar alternativa dos agentes penitenciários envolvidos nos fatos. I.2- Encaminhe-se cópia destes autos, incluindo os DVDs ao Ministério Público, ao Conselho de Direitos Humanos e ao Conselho Carcerário de Joinville para o que de direito; I.3- Encaminhe-se cópia destes autos, incluindo os DVDs à Delegada Corregedora da Secretaria de Justiça e Cidadania, para os processos disciplinares cabíveis. I.4- Dê-se conhecimento à Corregedoria-Geral de Justiça. II- Da publicidade dos atos. Finalmente, não gozando o feito de segredo de justiça, alguns esclarecimentos devem ser versados no que diz respeito ao acesso franqueado aos segmentos midiáticos acerca destes autos. Não se pode ignorar que o inciso IX do art. 93 da CF determina que todos os julgamentos serão públicos, bem como que todas as decisões serão fundamentadas. Estas determinações, aliás, possuem inegável efeito de imbricação, na medida em que quanto mais públicas as decisões, maior controle social sofrerão e, inegavelmente, maior a necessidade de suas fundamentações. É importante lembrar que os jornais são os olhos e ouvidos de uma nação (Rui Barbosa). Jornalistas éticos são testemunhas do poder e da vida, são garantidores das liberdades públicas e dos direitos individuais. Por isso mesmo a Constituição Federal estabelece em seu art.220, §§1º e 2º, que nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, vedando toda a qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. Na espécie, a situação extravasa todo e qualquer caráter de sigilo que pudesse pairar sobre estes autos, devendo assim ser ponderada e prevalecer. Com efeito, em havendo procura pelos meios de comunicação (o que por certo haverá, uma vez que familiares de detentos e os próprios vem insistindo e denunciando os fatos havidos), autorizo desde já o acesso sobre a Portaria inicial, sobre este despacho, sobre os exames de corpo de delito e sobre os DVDs das imagens gravadas, preservados os nomes e dados particulares dos detentos e dos investigados e respeitada de qualquer forma a ética que deve reger a imprensa. Joinville (SC), 01 de fevereiro de 2013. João Marcos Buch Juiz de Direito * A decisão é pública e pode ser acessada na página do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina (www.tjsc.jus.br) por meio do número dos autos. Postado por AJD-SC às 12:08

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Estadão -PPP das prisões e a dívida constitucional brasileira

Excelente texto sobre as Parceria Público-Privadas das prisões e a realidade carcerária brasileira. PPP das prisões e a dívida constitucional brasileira 23 de janeiro de 2013 | Conrado Hübner Mendes * O tema das prisões esteve em evidência no ano de 2012: autoridades de peso, como os ministros José Eduardo Cardozo e Gilmar Mendes, editoriais do Estadão e da Folha de S.Paulo, novas pesquisas e seminários acadêmicos, juntos, passaram a impressão de que tanto o debate público quanto as instituições começaram a enfrentar, com o devido senso de urgência e prioridade, esse velho desafio. A inauguração do primeiro presídio privado do País, produto de uma parceria público-privada (PPP) entre o governo de Minas Gerais e um consórcio de empresas, pôs o assunto de volta à ordem do dia. Infelizmente, porém, a cobertura da mídia até o momento foi de uma frivolidade juvenil. Já faz anos que objeções jurídicas e econômicas ao uso desse tipo contratual para presídios vêm sendo apresentadas. Pesquisadores ao redor do mundo, atentos às experiências em que o modelo mineiro diz inspirar-se, não expressam o mesmo entusiasmo (dois exemplos recentes são o artigo The Failed Promise of Prison Privatization, de R. Culp, e o relatório da Aclu Banking on Bondage). Argumentam que, não bastassem os perversos incentivos à violação de direitos dos presos e dos próprios funcionários que ali trabalham, os tais ganhos em eficiência não são nada certos. Acima de tudo, dizem, cria-se um círculo vicioso entre a proliferação de prisões privadas - um mercado artificial, oligopolizado, com crescente poder político - e o contínuo aprofundamento do encarceramento em massa. Sobre essa controvérsia as reportagens nada disseram. Nenhuma pergunta sobre os riscos jurídicos, nenhuma suspeita sobre as vantagens financeiras, nenhum olhar desconfiado em relação à extravagante fonte de lucro escolhida pelos parceiros privados. Ao comprarem, passivamente, a imagem da hotelaria prisional, sonegaram ao público a possibilidade da reflexão crítica. Antes que embarquemos nesse modelo, porém, precisamos testá-lo com maior clareza do que está em jogo. Qualquer discussão sobre gestão prisional deve começar pela pergunta sobre a própria legitimidade do encarceramento em massa. O Brasil é um caso exemplar dessa prática. Meio milhão de pessoas, a quarta maior população carcerária do mundo, amontoam-se nas prisões em condições sub-humanas. São submetidas à dieta física, psicológica e moral mais degradante que conseguimos conceber, após a qual se pretende que voltem, bem comportadas e dispostas, à convivência social. Assim se resume e se repete, há muitos anos, nossa principal estratégia para lidar com o crime. Conhecemos bem as consequências dessa estratégia, mas historicamente aplicamos o mínimo de nossa energia política em reformá-la. Apesar das dificuldades práticas para se produzir uma radiografia exaustiva do sistema prisional brasileiro, pesquisas já revelaram que o País encarcera cada vez mais, e de maneira meticulosamente discriminatória e irracional. Várias perguntas já podem ser respondidas com razoável confirmação empírica. Quem são os privados de liberdade? O retrato demográfico das prisões mostra que raça e classe social ainda são variáveis cruciais para explicar o grau de intensidade de cada sentença condenatória ou a decisão de aplicar a prisão provisória (para fins de investigação). De forma geral, negros e pobres recebem tratamento jurídico diferente de brancos e ricos. Percebe-se, enfim, que o pacote convencional de discriminação praticado pela sociedade brasileira se reflete fielmente no perfil demográfico das prisões. Presos por qual fundamento legal? O retrato jurídico indica que as prisões provisórias, conforme a média nacional, representam em torno de 40% do total. Quando se observa qual crime deu margem à prisão, tanto a provisória quanto a decorrente de sentença, identifica-se peso estatístico significativo de crimes não violentos. Entre estes, os crimes relacionados a drogas se destacam. De um lado, portanto, nota-se um Judiciário que extrapola na aplicação de prisões provisórias e, de outro, pouco imaginativo e corajoso na experimentação de penas alternativas e na cobrança do Executivo pelos serviços que a política criminal exige. Presos em que condições? O retrato físico das prisões brasileiras é estarrecedor. As condições de insalubridade, em seus diversos aspectos, a precariedade da assistência à saúde e a violência interna estão entre os maiores problemas. Para completar, na perspectiva de gênero, mulheres sofrem outras graves violações relacionadas às especificidades da condição feminina. Esses exemplos configuram o que o jargão jurídico chama de "violação estrutural de direitos", isto é, a supressão contínua e sistemática de todo um conjunto de direitos básicos de um determinado grupo social. Qual o efeito, no fim das contas, dessa política? O retrato funcional, previsivelmente, mostra um óbvio descompasso entre os objetivos oficiais da prisão - de prevenção, dissuasão e reeducação - e os papéis reais que ela, disfarçadamente, cumpre (de repressão da pobreza, de combustível para a demagogia política e manipulação midiática, etc.). Tal política faz vista grossa às numerosas evidências empíricas sobre a ineficácia da prisão para o alcance daqueles fins. Não precisamos recorrer à famosa frase de Dostoievski segundo a qual "o grau civilizatório de uma sociedade" se mede, antes de tudo, por suas prisões para concluir que essa é a face mais trágica do nosso subdesenvolvimento humano. Se contrastamos os fatos acima com a Constituição de 1988, como seus artigos 5.º e 6.º, não será exagerado dizer que, dentro do nosso extenso passivo constitucional, essa é uma das inconstitucionalidades mais sérias e estacionárias do Brasil contemporâneo. É provavelmente a que mais sofre, ainda por cima, da indiferença social, da miopia política e do oportunismo eleitoreiro. O monitoramento, pela mídia, dos novos modelos de gestão prisional é essencial para avanços concretos. Para tanto não se pode deslumbrar precipitadamente com a retórica da inovação gerencial ou com atos de marketing político. * Conrado Hübner Mendes, professor da Direito GV, é doutor em Direito pela Universidade de Edimburgo e em Ciência Política pela USP.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Situação prisional de SP - Estadão

Sistema prisional na encruzilhada As autoridades penitenciárias estaduais estimam que a população encarcerada no sistema prisional paulista chegará à marca de 200 mil pessoas nos primeiros meses de 2013. É um número preocupante, porque São Paulo não tem um número de estabelecimentos penais suficiente para abrigar tantos presos. Por dia, entram, em média, 82 novos presos no sistema prisional paulista. Pelos números do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), nos últimos anos o número de presos cresceu 37%, em todo o País - e uma das maiores taxas de crescimento ocorreu no Estado de São Paulo. O Brasil tem uma população carcerária de 514 mil presos, mas o sistema prisional foi projetado para acolher apenas 306 mil. O resultado é um sistema superlotado, com presos provisórios (aguardando julgamento) e presos já condenados vivendo em condições degradantes. É por isso que o País tem sido denunciado em organismos multilaterais - como a OEA e a ONU - por movimentos de defesa de direitos humanos. Com 150 penitenciárias, 171 cadeias públicas, uma população de 189 mil detentos - o equivalente a 40% da população carcerária nacional - e 115 mil mandados de prisão a serem cumpridos pela Polícia Judiciária, São Paulo tem o maior sistema prisional do País. Tem, igualmente, o maior déficit de vagas do País - cerca de 83,2 mil, segundo o Departamento Penitenciário Nacional. Em algumas unidades, como o Centro de Detenção Provisória de Santo André, há 3,5 presos por vaga. Para suprir esse déficit, seriam necessárias 93 novas penitenciárias no Estado. Até a década de 1990, os governos paulistas investiram muito pouco na construção de novos centros de triagem, cadeias e penitenciárias. A partir das gestões de Mário Covas e Geraldo Alckmin, os investimentos no setor aumentaram, mas não no ritmo equivalente ao do crescimento do número de ocorrências policiais, de julgamentos e de condenações. Entre 2010 e 2012, foram inauguradas oito penitenciárias, das quais sete hoje já estão à beira do colapso, com mais detentos do que comportam. Atualmente, estão sendo construídos 16 novos estabelecimentos penais de diversos portes, que deverão ser entregues em 2013 e 2014. Para minimizar o problema, entre 2008 e 2011 o CNJ realizou vários mutirões carcerários em todo o País, com o objetivo de avaliar os processos dos presos provisórios e a situação dos presos já julgados e condenados. O balanço dessa iniciativa revelou que 36 mil pessoas já deveriam estar soltas e 76 mil já estavam em condições de receber os benefícios do regime de progressão da pena. No caso do Estado de São Paulo, juízes a serviço do CNJ constataram o sistemático descumprimento da Lei de Execuções Penais e, principalmente, a falta de estabelecimentos destinados ao regime aberto e semiaberto. Por isso, presos sem periculosidade estavam submetidos ao regime fechado. Apesar de aplaudir a iniciativa do CNJ, magistrados, promotores e criminólogos alegam que os mutirões - assim como o uso de tornozeleiras eletrônicas - são medidas apenas pontuais. Para eles, a medida mais adequada seria a valorização das penas alternativas, como a prestação de serviços e a inclusão em programas de reinserção social dos presos condenados por pequenos crimes. O problema é que as penas alternativas não funcionam quando os índices de reincidência são muito altos. Em alguns Estados, 70% dos presos que deixam a prisão voltam a delinquir, segundo dados do CNJ. "A reincidência é grande. Todos os dias recebemos pessoas que dizem que vão voltar para o crime porque não tiveram oportunidades, não têm instrução e não aprenderam nada nas prisões", diz José de Jesus Filho, assessor da Pastoral Carcerária de São Paulo. As autoridades penitenciárias encontram-se numa encruzilhada. Por falta de recursos, não conseguem expandir o sistema prisional no mesmo ritmo do aumento das prisões, pela polícia, e das condenações, pela Justiça. E, por causa do aumento da reincidência criminal, não conseguem pôr em prática punições menos severas, como as penas alternativas.