quinta-feira, 14 de outubro de 2010

“A concepção vingativa da pena: castigo como violação da norma penal”.

“A concepção vingativa da pena: castigo como violação da norma penal”.

Por Rafael Silva de Faria

“Quem procura o fundamento jurídico da pena deve também procurar, se é que já não encontrou, o fundamento jurídico da guerra.” (TOBIAS BARRETO apud CARVALHO)


Grande arauto das liberdades individuais, o saudoso EVANDRO LINS E SILVA, em depoimento dado ao Centro de Pesquisas e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), no qual originou a obra “O salão dos passos perdidos”, asseverava que “a prisão é realmente monstruosa, e eu tenho verdadeira alergia à cadeia. A política criminal hoje dominante no pensamento científico dos estudiosos do direito penal é: prisão só ultima ratio, só em último caso.” (p. 214)
Na sequência o eminente criminalista, ex –ministro do STF, ao discorrer sobre a pena de morte e sua ineficácia, porquanto não diminuiria a criminalidade, aduzia que “na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipar um pouco ao próprio delinqüente.” (p. 215)
É de tempos imemoriais a concepção de que as penas para os que infringem a norma penal lato sensu (pré-positivação) visavam retribuir o ‘mal pelo mal’.
NORBERTO BOBBIO, em escrito sobre apena de morte de 1981, revela a historicidade da idéia do ‘olho por olho, dente por dente’ em PLATÃO, nesses termos:
“(...) tomemos um livro clássico, o primeiro grande livro sobre a justiça de nossa civilização ocidental: as leis, os nómoi, de Platão. No livro IX, Platão dedica algumas páginas ao problema das leis penais. Reconhece que ‘a pena deve ter a finalidade de tornar melhor’. Mas aduz que, ‘se se demonstrar que o delinqüente é incurável, a morte será para ele o menor dos males. (...) Falando precisamente de homicidas voluntários, Platão diz em certo momento que eles devem ‘necessariamente pagar a pena natural’, ou seja, a de ‘padecer o que fizeram’ (870 e). Chamo a atenção para o adjetivo ‘natural’, e para o princípio de ‘padecer’ o que se fez. Esse princípio, que nasce da doutrina da reciprocidade – que é dos Pitagóricos (mais antiga ainda, portanto, que a de Platão) e que será formulada pelos juristas medievais e repetida durante séculos com a famosa expressão segundo a qual o malum passions deve corresponder a malum actions – atravessa toda a história do direito penal e chega até nós absolutamente inalterado.” (BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 1992, p. 161/62).
JUAREZ CIRINO DOS SANTOS explica que a literatura penal possui várias explicações para a sobrevivência histórica da função retributiva da pena criminal. Primeiro, a psicologia popular, regida pelo talião, constitui a base antropológica da pena; segundo, a tradição religiosa judaico-cristã acidental apresenta a imagem retributiva-negativa da justiça divina; terceiro, a filosofia idealista ocidental é retributiva (Kant, Hegel, Jakobs, Feurbach); quarto, o discurso retributivo se baseia na lei penal que consagra o princípio da retribuição, insculpido no art. 59 do Código penal (o legislador determina ao juiz aplicar a pena conforme o necessário e suficiente para a reprovação do crime). (CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Teoria da pena. Fundamentos políticos e aplicação judicial, 2005, p. 04)
O direito penal arcaico, ou seja, anterior a Revolução Francesa, tinha como função da pena tão-somente a retribuição, conquanto inquestionável o caráter retributivo da pena hodiernamente (timbre real e inegável); a pena que se detém na simples retributividade, em nada se distingue da vingança, convertendo-se seu modo em seu fim (BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1996, p. 100).
THIAGO FABRES DE CARVALHO, em ensaio jurídico sobre o filme “Abril Despedaçado”, que relata história de famílias que se exterminam geração após geração, empreende uma ‘antropologia hermenêutica da violência’ relatada no filme. Amparado nas lições de François Ost, FABRES DE CARVALHO ensina que “o crime que a vingança pune, explica René Girardi, ‘quase nunca se concebe a si mesmo como primeiro; pretende ser já vingança de um crime mais original’.” (MORAIS DA ROSA, Alexandre; FABRES DE CARVALHO, Thiago. Processo penal eficiente e ética da vingança: em busca de uma criminologia da não violência. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen júris, 2010, p. 105)
O Direito penal, de todos os ramos do direito, é o que mais oprime por violar o mais importante bem jurídico individual – a liberdade -; ademais, por selecionar indivíduos que estão à margem da sociedade, denunciado pela Criminologia Crítica (“A intervenção [penal] busca manter as regras formais do Mercado”- MORAIS DA ROSA), o Direito repressor demarca uma perpetuação e perene situação de violência, por meio, precipuamente das penas corporais, que estigmatiza e ‘dessocializa’ qualquer cidadão que cai no sistema punitivo.
Segundo DERRIDA, “O próprio surgimento da justiça e do direito, o momento instituidor, fundador e justificante do direito, implica uma força performativa, isto é, sempre uma força interpretadora e um apelo à crença. (...) a operação de fundar, inaugurar, justificar o direito, fazer a lei, consistiria num golpe de força, numa violência performativa e, portanto interpretativa que, nela mesma, não é nem justa nem injusta, e que nenhuma justiça, nenhum direito prévio e anteriormente fundador, nenhuma fundação pré-existente, por definição, poderia nem garantir nem contradizer ou invalidar.” (DERRIDA apud MORAIS DA ROSA; FABRES DE CARVALHO, ob. cit. p.121)
Nessa esteira, do surgimento do direito e justiça como apelo à crença, destacado por DERRIDA, encontra-se, com o recrudescimento das penas e expansão do direito penal, a função simbólica da pena. O senso comum crê que o direito penal seja panacéia, olvidando-se que o apenado, cedo ou tarde, retornará ao seio social, formando-se o ciclo de violência (tão bem retratado no ensaio de Fabres de Carvalho), agora institucionalizado pelo Estado.
Desse modo, surge a indagação feita por LOUK HULSMAN: “(...) o homem é naturalmente bom ou mau? O homem tem necessidade de se vingar, de responder à violência com violência? (...) Afirmo que se o espírito de vingança devesse necessariamente se expressar, poderia ser canalizado de forma diferente da que ocorre no atual sistema punitivo.” (HULSMAN, Louk. CELIS, Jaqueline Bernat de. Penas Perdidas. O sistema penal em questão. Trad. Maria Lucia Karam. Ed. Luam, p. 119)
HULSMAN, expoente do abolicionismo penal, prossegue alegando que as formas mais benignas de reação ao crime exsurgiram quando os poderes se centralizaram e não mantêm qualquer tipo de ligação com desejo de vingança. A antropologia e a história ensinam que não é a duração do sofrimento inflingido que apaziguam os que clamam por vingança, mas sim a dimensão simbólica da pena, ou seja, o sentido de reprovação social do fato que lhe é atribuído (HULSMAN, Louk. CELIS, Jaqueline Bernat de. Ob. cit. p. 120/21).
Para ALICE BIANCHINI, “O que importa, para a função simbólica, é manter um nível de tranqüilidade na opinião pública, fundado na impressão de que o legislador se encontra em sintonia com as preocupações que emanam da sociedade. Criam-se, assim, novos tipos penais, incrementam-se penas, restringem-se direitos sem que, substancialmente, tais opções representem perspectivas de mudança no quadro que determinou a alteração (ou criação) legislativa. Produz-se a ilusão que algo foi feito.” (BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. São Paulo: Ed. RT, 2002, p. 124)
O espírito de vingança, entrelaçado com a função simbólica da pena, cegam o senso comum (inclusive do legislador ordinário), de modo que o instinto primitivo de vingança aflora sempre que a grande mídia noticia crimes de grande repercussão social, fazendo com que a vingança privada, literalmente, ressurja (Vide caso Nardoni: a população fez vigília em frente ao fórum no dia do julgamento gritando palavras de ordem e clamando por ‘justiça’ com, inclusive, linchamento moral do defensor do casal).
Daí o questionamento de FABRES DE CARVALHO: “Como justificar, portanto, o imaginário social punitivo, o anseio presente em todos os grupos sociais de esconjurar a violência mortífera, de criar mecanismos capazes de transformar o desejo de vindicta numa instituição social susceptível de limpar a mácula da ofensa, de compensar o prejuízo sofrido, e assim restaurar a concórdia no seio do grupo? Quais as fontes do imaginário punitivo, e em que medida podem atuar para restabelecer a paz no interior da comunidade? Quais as relações, portanto, entre pena e memória, entre pena e recordação da lei, afinal entre pena e vingança? Como superar ou transcender o castigo como puro e simples desejo de vingança cega e mortífera?” (MORAIS DA ROSA, Alexandre; FABRES DE CARVALHO, Thiago. Ob. cit. p. 131/32).
LOUK HULSMAN entende que “O sistema penal é especificamente concebido para fazer mal. (...) O sistema penal (...) produz violência, (...) na medida em que, independente da vontade das pessoas que o acionam, ele é estimatizante, ou seja, gera uma perda de dignidade. É isso a estigmatização... (...)”.(HULSMAN, Louk. CELIS, Jaqueline Bernat de. Ob. cit. p. 88).
SALO DE CARVALHO é categórico quanto ao efeito inverso da pena criada para conter a barbárie medieva de modo que “(...) as ciências criminais – concebidas como integração entre as técnicas dogmáticas do direito penal e processual penal, da criminologia e da política criminal -, direcionadas a anular a violência do bárbaro e a afirmar os ideais civilizados, ao longo do processo de constituição (e de crise) da Modernidade, produziram seu oposto, ou seja, colocaram em marcha tecnologia formatada pelo uso desmedido da força, cuja programação, caracterizada pelo alto poder destrutivo, tem gerado inominável custos de vidas humanas. O motivo deste aparente paradoxo é apresentado por Morin: ‘La barbárie no es solo um elemento que acompaña a la civilización, sino que la integra. La civilización produce barbárie(...)’.3
Possível, portanto, neste quadro, concordar com Luigi Ferrajoli no sentido de que “a história das penas é seguramente mais horrenda e infame para a humanidade que a própria história dos delitos’.4” (CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010 p. xxii).
Nesse cenário de ‘castigo institucionalizado’ (FABRES DE CARVALHO), e à guisa de conclusão, mister trazer à tona que a missão do Direito penal não pode ser a de realizar vinganças, que se perpetuam, inexoravelmente no tempo, mas tão-somente tutelar bens jurídicos, não perdendo de vista o Princípio da intervenção mínima (ultima ratio)e seus consectários, tais quais, os Princípios da subsidiariedade e fragmentariedade.
Ademais, o caráter retributivo da pena (retribuir para expiar um mal [crime] com outro mal [pena]) pode ser considerado ato de fé, mas não é democrático nem científico, porquanto, no Estado Democrático de Direito o poder é exercido em nome do povo, e não em nome de Deus, e a pena como retribuição do crime se fundamenta num dado indemonstrável: a liberdade de vontade do ser humano, pressuposta no juízo de culpabilidade (CIRINO DOS SANTOS, Juarez, ob.cit., p. 05/06)
Importante destacar, a título de conclusão, o § 33 da obra “Humano, demasiado humano”, de NIETZSCHE, intitulado ‘Elementos da vingança’, que se amolda a tudo do que foi trabalhado até agora, nesses termos:
“A palavra Rache (vingança) se pronuncia tão depressa: parece quase como se não pudesse conter mais de uma raiz de conceito e de sentimento. (...) Como se todas as palavras não fossem bolsos em que se guardou ora isto, ora aquilo, ora várias coisas de uma vez!” (NIETZCHE, Friederich Wilhelm. Os pensadores. Obras incompletas. Humano, demasiado humano. 2ª ed. São Paulo: Abril cultural, 1978, p. 144)
Na sequência, divagando sobre a vingança, NIETZSCHE aduz que mister a distinção da vingança como um contragolpe defensivo que se desfecha quase sem querer, tal como um revide instintivo; do mesmo modo se procede contra pessoas que causam dano: uma meditação sobre a vulnerabilidade do outro e sua aptidão ao sofrimento é sua pressuposição: quer-se fazer mal. (ob. cit. p. 144)
Daí indaga NIETZSCHE:
“Se na primeira espécie de vingança era o medo do segundo golpe que tornava o contragolpe tão forte quanto possível. Aqui há quase total indiferença diante daquilo que o adversário fará; a força do contragolpe é determinada somente por aquilo que ele nos fez. E o que foi que ele fez? E de que nos serve que sofra agora, depois que nós sofremos por causa dele? Trata-se de uma restauração (...). Assim, por meio da pena judicial, tanto a honra privada com também a honra social são restauradas: isto é – a pena é vingança. – Há também nela, indubitavelmente, aquele outro elemento da vingança descrito em primeiro lugar, na medida que graças a ela a sociedade serve à sua autoconservação e desfere um contragolpe em legítima defesa. A pena quer impedir um novo dano, quer intimidar. Dessa maneira, ambos os elementos tão diferentes da vingança estão efetivamente vinculados na pena, e isso pode ser, talvez, o que mais atua no sentido de entreter aquela mencionada confusão de conceitos, em virtude da qual o indivíduo que se vinga costuma não saber o que quer propriamente.” (ob. Cit. p. 144/46)




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1996.

BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. São Paulo: Ed. RT, 2002.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 1992.

CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Teoria da pena. Fundamentos políticos e aplicação judicial, 2005.

HULSMAN, Louk. CELIS, Jaqueline Bernat de. Penas Perdidas. O sistema penal em questão. Trad. Maria Lucia Karam. Ed. Luam

MORAIS DA ROSA, Alexandre; FABRES DE CARVALHO, Thiago. Processo penal eficiente e ética da vingança: em busca de uma criminologia da não violência. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen júris, 2010.

NIETZCHE, Friederich Wilhelm. Os pensadores. Obras incompletas. Humano, demasiado humano. 2ª ed. São Paulo: Abril cultural, 1978.

SILVA, Evandro Lins e. O salão dos passos perdidos. Ed. Nova fronteira.

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