sábado, 9 de outubro de 2010

COISAS DA VIDA NORMAL

COISAS DA VIDA NORMAL*
Autor: Léo Rosa de Andrade;



LÉO ROSA DE ANDRADE
Doutor em Direito pela UFSC. Psicólogo e Jornalista. Professor da Unisul.
Site: www.leorosa.com.br





A relação entre duas pessoas, o dia a dia de um casal forma cumplicidades, cria segredos, mostra por dentro, suprime inibições. Depois de algum tempo, segundo me contam, na vida íntima de um par quase tudo está exposto por um diante do outro. Não se trata de perder a vergonha. Parece que a vergonha acaba ficando sem sentido. Ora, vergonha é escrúpulo e falta de confiança em si, o que leva à repressão de grandes e pequenas vontades. O cotidiano vai dando jeito nessas coisas.





De fato, o cotidiano vai criando uma moralidade doméstica, com códigos compreensíveis pelo casal, e essa moralidade doméstica dilui a moralidade individual das partes que gozam de intimidade. As partes se sabem, com o que isso tem de bom e de mau. Já ouvi que entre a porta da sala e a da cozinha há mais segredos do que entre o céu e a terra. Esses segredos, claro, são para os de fora, que dentro de casa basta prestar atenção aos detalhes que uma parte saberá o que quiser e o que não quiser saber da outra. Os delicados jeitinhos ou as bardas de cada qual falam por si.





Cada parte está exposta à outra por muitas vezes, por muito tempo. A moral individual aberta é exposição plena. E mais do que a moral, de tanto se expor, expõe-se, também, a compostura dos modos. A correção de maneiras vai recebendo licenças, e não demora muito se vai abandonando a barriga, a depilação, a tampa do bacio, os gazes, o palavreado. Fica-se, e o que é pior, com licença de ficar, relaxado. O exibir o melhor de si transforma-se em desapreço esculachado. E não é menosprezo por alguma desafeição; é por quedar-se desatento, por esquecer-se de cuidar e de cuidar-se. É só descuido.





Não sou muito de conselhos, mas recomendei a uma menina amiga minha: vai viver com alguém? Mantenha o nível. Se gerar uma expectativa alta, trate de manter o estado de coexistência elevado. A vulgarização do comportamento no contubérnio devasta a sensação do belo, do clima amoroso, da graça de conviver. É a estética do desapaixonado, inclusive por si próprio. Se o olhar-se no espelho já não acorda Narciso, não acorda mais nada. Ninguém se interessa pelo olhar do outro se não se interessa, antes, por olhar-se a si. Quero que o outro aprecie o que eu aprecio em mim.





Um conhecido contou-me um causo sobre intimidade e apreciação: o casal já não se curtia. Ele não fazia mais a barba do rosto que ela gostava de alisar; ela não fazia os pelos da perna que ele gostava de afagar. Ninguém mais passeava a mão pelo corpo de mais ninguém. A coisa ia de ruim para pior. Perdurava o silêncio, a televisão ainda salvava a situação. O problema agravou-se exatamente por causa disso, a televisão. O filme tinha rapazes bonitos e cenas carinhosas. Havia sexo. Ela, por qualquer razão, tomou-se de vontade de namorar.





A transa ia boa, mas, aí, o rosto dela: olhos fechados e um sorriso gostoso que há tempos não era assim. Não parou enquanto pensava, mas não dava para não pensar: não era com ele. Ela não estava com ele. Ele conhecia bem, sabia que aquele jeito entregue, sem pressa, era qualquer coisa que não era transar com ele. Para, não para, falou: abra os olhos. Ela nem se mexeu; ou não ouviu, ou não entendeu, ou não quis entender. Repetiu. Ela olhou, mas não desmanchou o sorriso. Ele foi macho: ou é comigo, ou não é com ninguém. Fica de olho aberto, tem que me ver. Ela ficou, mas pensou em quem quis, olhando para o teto. Dizem que, um com o outro, foi a última vez.

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