terça-feira, 10 de junho de 2014

STJ- Cabimento de MS contra decisum que arquiva IP, pedido pela acusação

RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 44.425 - RS (2013/0395188-6)
RELATOR : MINISTRO JORGE MUSSI
RECORRENTE : FELIPE MENEGHELLO MACHADO
ADVOGADO : FELIPE MENEGHELLO MACHADO (EM CAUSA PRÓPRIA)
RECORRIDO : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
RÉU : HÉLIO DA CONCEIÇÃO FERNANDES COSTA
DECISÃO
Trata-se de Recurso Ordinário em Mandado de Segurança interposto por FELIPE MENEGHELLO MACHADO de acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, nos autos do Mandado de Segurança 70056693286, assim ementado (e-STJ fl. 210):

MANDADO DE SEGURANÇA. ESTELIONATO. DECISÃO QUE
DETERMINOU O ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL, A
PEDIDO DO MINISTÉRIO PUBLICO. INEXISTÊNCIA DE DIREITO
LÍQUIDO E CERTO, DO LESADO PELO DELITO, A PERSECUÇÃO
PENAL.
Ainda que sedimentada na jurisprudência a impossibilidade da
aplicação da denominada prescrição pela pena projetada, tendo o
Ministério Público, titular da ação penal, requerido o arquivamento
do inquérito policial, por tal fundamento, e aquiescido o juízo da
origem, inexiste direito líquido e certo do lesado pelo delito em
postular a remessa dos autos ao Procurador-Geral da Justiça.
Prejuízos que devem ser postulados no juízo cível.
DENEGADA A SEGURANÇA.

Em suas razões (fls. 91/123), sustenta o recorrente, em síntese, "que a controvérsia reside na circunstância de tal decisão ter sido proferida em desacordo com o princípio da legalidade, visto que o Magistrado de primeiro grau não respeitou os ditames dos arts. 109 e 110 do Código Penal, que regem a matéria a respeito da prescrição, atuando fora da esfera estabelecida pelo legislador. Portanto, é possível o conhecimento do Mandado de Segurança no âmbito penal, notadamente quando impetrado contra decisão teratológica, que, no caso, determinou o arquivamento de inquérito policial por O motivo diverso do que a ausência de elementos hábeis para desencadear eventual persecução penal em desfavor do indiciado HÉLIO" (e-STJ fl. 225). O Ministério Público Federal opinou pelo provimento do recurso ordinário para que seja determinada a remessa à Procuradoria Geral de Justiça (e-STJ fls. 248/251).

É o relatório.

Acerca do cabimento de mandado de segurança como sucedâneo recursal, a jurisprudência firme desta Corte Superior de Justiça e do Pretório Excelso é no sentido de que a ação mandamental visa a proteção de direito líqüido e certo contra ato abusivo ou ilegal de autoridade pública, não podendo ser utilizada de forma substitutiva, sob pena de se desnaturar a sua essência constitucional. Daí, somente é cabível o excepcional instrumento do writ of mandamus contra ato judicial eivado de ilegalidade, teratologia ou abuso de poder, que decorram ao paciente irreparável lesão ao seu direito líquido e certo. Com efeito, "Segundo orientação do Superior Tribunal de Justiça, em situações teratológicas, abusivas, que possam gerar dano irreparável, o recurso previsto não tenha ou não possa obter efeito suspensivo, admite-se que a parte se utilize do mandado de segurança contra ato judicial (AgRg no MS 18.995/DF, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, CORTE ESPECIAL, julgado em 16/09/2013, DJe 23/09/2013).

Por outro lado, "Da decisão judicial que, acolhendo manifestação do
Ministério Público, ordena o arquivamento de inquérito policial, não cabe recurso.
(Precedentes)" (RMS 24.328/PR, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA,
julgado em 13/12/2007, DJe 10/03/2008).

Assim, a prescrição da pretensão punitiva, utilizando como base de
cálculo suposta pena a ser concretizada numa possível e futura sentença condenatória,
também conhecida por virtual, antecipada ou hipotética, não encontra amparo em nosso
ordenamento jurídico, o qual prevê apenas que a referida causa extintiva regula-se pelo
máximo da pena abstratamente cominada ou, ainda, pela sanção concretamente
aplicada.
Nesta Corte Superior de Justiça, aliás, a matéria já se encontra inclusive
sumulada, valendo transcrever, por oportuno, o teor do enunciado 438, verbis:
"É inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição
da pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética,
independentemente da existência ou sorte do processo
penal."

Nesse sentido:
PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO
ESPECIAL. PRESCRIÇÃO EM PERSPECTIVA. IMPOSSIBILIDADE.
SÚMULA 438/STJ.
I. É inadmissível o reconhecimento de prescrição antecipada da
pena em perspectiva, por absoluta ausência de previsão legal.
Incidência da Súmula 438/STJ.
II. Agravo regimental improvido.
(AgRg no AREsp 23.516/PI, Rel. Ministra REGINA HELENA
COSTA, QUINTA TURMA, julgado em 24/09/2013, DJe
02/10/2013)


Logo, na hipótese vertente, arquivado o inquérito policial (e-STJ fl. 59) a
pedido do representante do Ministério Público (e-STJ fls. 55/58), com base na
perspectiva virtual e, inexistindo recurso contra referida decisão, à vítima restava
somente o mandamus para proteção de seu direito líquido e certo ao devido processo
legal.

Nesse sentido "Sendo irrecorrível a decisão que, segundo a jurisprudência
consolidada dos Tribunais Superiores, é manifestamente ilegal, por não albergar o
nosso ordenamento jurídico a prescrição em perspectiva, restaria à vítima apenas a
possibilidade da impetração de mandado de segurança" (AgRg no RMS 33270/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 06/08/2013, DJe 13/08/2013)


Ante o exposto, com fundamento no caput do art. 557 do Código de
Processo Civil, dou provimento ao recurso ordinário para, afastando o fundamento da
prescrição em perspectiva, determinar o retorno dos autos ao juízo de primeira
instância para, nos termos do art. 28 do CPP, remeter à Procuradoria Geral de Justiça.
Publique-se e intimem-se.
Brasília (DF), 21 de maio de 2014.
Ministro JORGE MUSSI


Relator

quinta-feira, 24 de abril de 2014

STJ - Informativo 537/2014

Quinta Turma
DIREITO PENAL. RESSARCIMENTO DE DANO DECORRENTE DE EMISSÃO DE CHEQUE FURTADO.
Não configura óbice ao prosseguimento da ação penal – mas sim causa de diminuição de pena (art. 16 do CP) – o ressarcimento integral e voluntário, antes do recebimento da denúncia, do dano decorrente de estelionato praticado mediante a emissão de cheque furtado sem provisão de fundos. De fato, a conduta do agente que emite cheque que chegou ilicitamente ao seu poder configura o ilícito previsto no caput do art. 171 do CP, e não em seu § 2º, VI. Assim, tipificada a conduta como estelionato na sua forma fundamental, o fato de ter o paciente ressarcido o prejuízo à vítima antes do recebimento da denúncia não impede a ação penal, não havendo falar, pois, em incidência do disposto na Súmula 554 do STF, que se restringe ao estelionato na modalidade de emissão de cheques sem suficiente provisão de fundos, prevista no art. 171, § 2.º, VI, do CP. A propósito, se no curso da ação penal ficar devidamente comprovado o ressarcimento integral do dano à vítima antes do recebimento da peça de acusação, esse fato pode servir como causa de diminuição de pena, nos termos do previsto no art. 16 do CP. Precedentes citados: RHC 29.970-SP, Quinta Turma, DJe 3/2/2014; e HC 61.928-SP, Quinta Turma, DJ 19/11/2007. HC 280.089-SP, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 18/2/2014.
DIREITO PROCESSUAL PENAL. NULIDADE NO JULGAMENTO DO TRIBUNAL DO JÚRI.
É nulo o julgamento no Tribunal do Júri que tenha ensejado condenação quando a acusação tiver apresentado, durante os debates na sessão plenária, documento estranho aos autos que indicaria que uma testemunha havia sido ameaçada pelo réu, e a defesa tiver se insurgido contra essa atitude fazendo consignar o fato em ata. De acordo com a norma contida na antiga redação do art. 475 do CPP, atualmente disciplinada no art. 479, é defeso às partes a leitura em plenário de documento que não tenha sido juntado aos autos com a antecedência mínima de três dias. Trata-se de norma que tutela a efetividade do contraditório, que é um dos pilares do devido processo legal, sendo certo que a sua previsão legal seria até mesmo prescindível, já que o direito das partes de conhecer previamente as provas que serão submetidas à valoração da autoridade competente é ínsito ao Estado Democrático de Direito. De fato, existem entendimentos doutrinários e jurisprudenciais no sentido de que eventual inobservância à norma em comento caracterizaria nulidade de natureza relativa, a ensejar arguição oportuna e comprovação do prejuízo suportado. Entretanto, não há como negar que a atuação de qualquer das partes em desconformidade com essa norma importa na ruptura da isonomia probatória, a qual deve ser observada em toda e qualquer demanda judicializada, ainda mais no âmbito de uma ação penal – cuja resposta estatal, na maioria das vezes, volta-se contra um dos bens jurídicos mais preciosos do ser humano – e, principalmente, no procedimento dos crimes dolosos contra a vida, em que o juízo condenatório ou absolutório é proferido por juízes leigos, dos quais não se exige motivação. Com efeito, o legislador ordinário estabeleceu, ao regulamentar o referido procedimento, uma peculiar forma de julgamento, já que os jurados que compõem o Conselho de Sentença são chamados a responderem de forma afirmativa ou negativa a questionamentos elaborados pelo juiz presidente, razão pela qual os seus veredictos são desprovidos da fundamentação que ordinariamente se exige das decisões judiciais. Assim, toda a ritualística que envolve o julgamento dos delitos dolosos contra a vida tem por finalidade garantir que os jurados formem o seu convencimento apenas com base nos fatos postos em julgamento e nas provas que validamente forem apresentadas em plenário. No caso de ser constatada quebra dessa isonomia probatória, como na hipótese em análise, não há como assegurar que o veredicto exarado pelo Conselho de Sentença tenha sido validamente formado, diante da absoluta impossibilidade de se aferir o grau de influência da indevida leitura de documento não juntado aos autos oportunamente, justamente porque aos jurados não se impõe o dever de fundamentar. Ademais, ainda que se empreste a essa nulidade a natureza relativa, na hipótese em que a defesa do acusado tenha consignado a sua irresignação em ata, logo após o acusador ter utilizado documento não acostado aos autos oportunamente, não há falar em preclusão do tema. Sobrevindo, então, um juízo condenatório, configurado também se encontra o prejuízo para quem suportou a utilização indevida do documento, já que não se vislumbra qualquer outra forma de comprovação do referido requisito das nulidades relativas. HC 225.478-AP, Rel. Min. Laurita Vaz e Rel. para acórdão Min. Jorge Mussi, julgado em 20/2/2014.
Sexta Turma
DIREITO PENAL. HOMICÍDIO CULPOSO COMETIDO NO EXERCÍCIO DE ATIVIDADE DE TRANSPORTE DE PASSAGEIROS.
Para a incidência da causa de aumento de pena prevista no art. 302, parágrafo único, IV, do CTB, é irrelevante que o agente esteja transportando passageiros no momento do homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor. Isso porque, conforme precedente do STJ, é suficiente que o agente, no exercício de sua profissão ou atividade, esteja conduzindo veículo de transporte de passageiros. Precedente citado: REsp 1.358.214-RS, Quinta Turma, DJe 15/4/2013. AgRg no REsp 1.255.562-RS, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 4/2/2014.
DIREITO PENAL. ILEGALIDADE NA MANUTENÇÃO DE INIMPUTÁVEL EM ESTABELECIMENTO PRISIONAL.
É ilegal a manutenção da prisão de acusado que vem a receber medida de segurança de internação ao final do processo, ainda que se alegue ausência de vagas em estabelecimentos hospitalares adequados à realização do tratamento. Com efeito, o inimputável não pode, em nenhuma hipótese, ser responsabilizado pela falta de manutenção de estabelecimentos adequados ao cumprimento da medida de segurança, por ser essa responsabilidade do Estado. Precedentes citados: HC 81.959-MG, Sexta Turma, DJ 25/2/2008; RHC 13.346-SP, Quinta Turma, DJ 3/2/2003; e HC 22.916-MG, Quinta Turma, DJ 18/11/2002.RHC 38.499-SP, Rel. Min. Maria Thereza De Assis Moura, julgado em 11/3/2014.
DIREITO PROCESSUAL PENAL. INTIMAÇÃO POR EDITAL NO PROCEDIMENTO DO JÚRI.
No procedimento relativo aos processos de competência do Tribunal do Júri, não é admitido que a intimação da decisão de pronúncia seja realizada por edital quando o processo houver transcorrido desde o início à revelia do réu que também fora citado por edital. Efetivamente, o art. 420, parágrafo único, do CPP – cujo teor autoriza a utilização de edital para intimação da pronúncia do acusado solto que não for encontrado – é norma de natureza processual, razão pela qual deve ser aplicado imediatamente aos processos em curso. No entanto, excepciona-se a hipótese de ter havido prosseguimento do feito à revelia do réu, citado por edital, em caso de crime cometido antes da entrada em vigor da Lei 9.271/1996, que alterou a redação do art. 366 do CPP. A referida exceção se dá porque, em se tratando de crime cometido antes da nova redação conferida ao art. 366 do CPP, o curso do feito não foi suspenso em razão da revelia do réu citado por edital. Dessa forma, caso se admitisse a intimação por edital da decisão de pronúncia, haveria a submissão do réu a julgamento pelo Tribunal do Júri sem que houvesse certeza da sua ciência quanto à acusação, o que ofende as garantias do contraditório e do plenitude de defesa. Precedentes citados: HC 228.603-PR, Quinta Turma, DJe 17/9/2013; e REsp 1.236.707-RS, Sexta Turma, DJe 30/9/2013. HC 226.285-MT, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 20/2/2014.
DIREITO PROCESSUAL PENAL. INTIMAÇÃO POR EDITAL NO PROCEDIMENTO DO JÚRI.
No procedimento relativo aos processos de competência do Tribunal do Júri, o acusado solto que, antes da Lei 11.689/2008, tenha sido intimado pessoalmente da decisão de pronúncia pode, após a vigência da referida Lei, ser intimado para a sessão plenária por meio de edital caso não seja encontrado e, se não comparecer, poderá ser julgado à revelia. Os arts. 413 e 414 do CPP, em sua redação original, impunham a suspensão do processo enquanto não operada a intimação pessoal do acusado acerca da decisão de pronúncia, embora o prazo prescricional continuasse a fluir. Com a modificação operada pela Lei 11.689/2008 no art. 420 do CPP, entende-se que foi superada a crise de instância a que submetido os feitos anteriores à referida Lei, ao restabelecer-se a marcha processual de ações penais suspensas. Cuidando-se de norma puramente processual, entende-se que o art. 420 do CPP, com a redação conferida pela Lei 11.689/2008, tem aplicabilidade imediata, tendo em vista a necessidade de densificação da isonomia, por meio do critério tempus regit actum. O mesmo entendimento é aplicável no que diz respeito à intimação ficta para a sessão plenária. Com efeito, o art. 431 do CPP assim dispõe: "Estando o processo em ordem, o juiz presidente mandará intimar as partes, o ofendido, se for possível, as testemunhas e os peritos, quando houver requerimento, para a sessão de instrução e julgamento, observando, no que couber, o disposto no art. 420 deste Código." No preceito normativo processual, houve expressa remissão ao artigo 420 do CPP, a possibilitar a intimação por edital do réu acerca da data da sessão plenária do júri. O art. 457 do CPP, por sua vez, admite que o julgamento ocorra sem a presença do réu, ao dispor que o julgamento “não será adiado pelo não comparecimento do acusado solto, do assistente ou do advogado do querelante, que tiver sido regularmente intimado". Desse modo, em hipóteses como a em análise, não há vício de procedimento, eis que o acusado está ciente do processo que tramita em seu desfavor, optando por não comparecer em plenário. Precedentes citados:  HC 251.000-SP, Quinta Turma, DJe 3/2/2014; HC 215.956-SC, Sexta Turma, DJe 16/10/2012; e HC 132.087-RJ, Quinta Turma, DJe 26/10/2009. HC 210.524-RJ, Rel. Min. Maria Thereza De Assis Moura, julgado em 11/3/2014.
DIREITO PROCESSUAL PENAL. LIMITES DA COMPETÊNCIA DO JUIZ DA PRONÚNCIA.
O juiz na pronúncia não pode decotar a qualificadora relativa ao “meio cruel” (art. 121, § 2º, III, do CP) quando o homicídio houver sido praticado mediante efetiva reiteração de golpes em região vital da vítima. O STJ possui entendimento consolidado no sentido de que o decote de qualificadoras por ocasião da decisão de pronúncia só está autorizado quando forem manifestamente improcedentes, isto é, quando completamente destituídas de amparo nos elementos cognitivos dos autos. Nesse contexto, a reiteração de golpes na vítima, ao menos em princípio e para fins de pronúncia, é circunstância indiciária do “meio cruel”, previsto no art. 121, § 2º, III, do CP, que consiste em meio no qual o agente, ao praticar o delito, provoca um maior sofrimento à vítima. Não se trata, pois, a reiteração de golpes na vítima de qualificadora manifestamente improcedente que autorize a excepcional exclusão pelo juiz da pronúncia, sob pena de usurpação da competência constitucionalmente atribuída ao Tribunal do Júri. Precedente citado: HC 224.773-DF, Quinta Turma, DJe 6/6/2013. REsp 1.241.987-PR, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 6/2/2014.

sábado, 15 de março de 2014

Do blog "justiça e mais' "Juiz vai a julgamento no Rio de Janeiro por pendurar quadro que denuncia genocídio contra os pobres

segunda-feira, 10 de março de 2014

Juiz vai a julgamento no Rio de Janeiro por pendurar quadro que denuncia genocídio contra os pobres

(reportagem publicada no site Viomundo, em 9.03.2014)


por Conceição Lemes
Nesta segunda-feira, às 13 horas, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) realiza um julgamento inusitado.
Os 25 membros do Órgão Especial do TJRJ avaliam representação judicial contra o juiz João Batista Damasceno.
“Crime”: ter pendurado em seu gabinete no dia 25 de agosto de 2013 o quadro Por uma cultura de paz, de Carlos Latuff.
“Trata-se de uma representação por suposto descumprimento de dever funcional”, explica o juiz João Batista Damasceno. “O corregedor diz que a obra de arte tem uma crítica à polícia e que pendurar tal quadro num gabinete é crítica a outra instituição e que tal comportamento é indevido a um juiz.”
O corregedor geral de Justiça é o desembargador Valmir de Oliveira Silva.
O corregedor age de ofício, ou seja, por imperativo legal em função do seu cargo.
No caso, a origem da representação foi um ofício do deputado estadual Flávio Bolsonaro, do PP. Houve, ainda, reação da “bancada da bala” e de algumas associações de policiais.
“A presidenta do tribunal é filha de policial e isso também pesou na decisão”, acrescenta o juiz Damasceno. “Há certa pessoalidade na questão, além do componente ideológico.”
Cronologia da punição:
2 de setembro – A presidenta do TJRJ, Leila Mariano, leu em sessão do tribunal o ofício recebido do deputado estadual Flávio Bolsonaro. Ela fez constar da ata que o tribunal mandara tirar o quadro.
3 de setembro – O juiz Damasceno recebeu comunicação para retirar o quadro. Mas  como soube antes que o tribunal determinaria a retirada, ele antecipou. Ao tomar conhecimento do caso, o desembargador Siro Darlan de Oliveira, da sétima Câmara do TJ-RJ, decidiu dar “asilo artístico” ao quadro.
“Ofereci ‘asilo artístico’ ao quadro perseguido em solidariedade a um magistrado perseguido por ter a coragem de defender seu ponto de vista em defesa da moralidade e da causa pública”, justifica o desembargador. “Além disso, é um direito constitucional, o da livre manifestação do pensamento, que não lhe pode ser negado.”
9 de setembro – O tribunal mandou retirar o quadro que estava na parede do gabinete de Siro Darlan.
12 de setembro – O desembargador Siro Darlan foi notificado pelo corregedor geral da Justiça de que o Órgão Especial do TJRJ abrira uma sindicância para apurar a sua conduta, considerada “afrontosa à decisão colegiada”.
“Já houve um arremedo de representação, que, como não tive mais notícia, estou entendendo como uma desistência”, diz Siro Darlan.
O quadro de Latuff, juntamente com outras obras de arte doadas por outros artistas, foi levado a leilão. Com dinheiro arrecado, foi adquirida uma casa para a família do pedreiro Amarildo, desaparecido após sequestro, tortura e morte nas mãos da polícia.
O quadro foi arrematado pelo desembargadora Kenarik Boujikian, presidenta da Associação Juízes para Democracia (AJD), que o pendurou em seu gabinete no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).

João Batista Damasceno,Siro Darlan e Kenarik Boujikian ousaram pendurar o quadro no gabinete; os três são da Associação Juízes para a Democracia (AJD)  
“O julgamento do juiz Damasceno é importante e paradigmático, porque a ação em si é um desrespeito à independência dos magistrados de se colocarem e expressarem opiniões como qualquer cidadão”, salienta Siro Darlan. “Esse é um direito constitucionalmente assegurado a todos os cidadãos. Não é um direito personalíssimo, mas um direito fundamental da sociedade.”
“Todos que foram cobrados dessa forma ao longo da história da civilização tiveram como algozes as forças reacionárias e conservadoras”, prossegue Darlan. “Esse julgamento também descortina uma prática nada republicana que vige nos tribunais de excluir os que incomodam e contestam essas práticas excludentes. O tribunal serve a uma minoria que o comanda de acordo com suas conveniências e interesses. Já vi magistrados sendo perseguidos por ousarem ler fora dessa cartilha conservadora e conivente.”
Segue a íntegra da nossa entrevista com o juiz João Batista Damasceno.
Viomundo — O que o levou a colocar o quadro no seu gabinete?
João Batista Damasceno — O quadro retrata a violência do Estado contra os excluídos. Os autos de resistência são formas de mascarar os assassinatos cometidos pelo aparelho repressivo do Estado nas periferias, vitimando principalmente jovens pobres e negros.
A colocação do quadro é uma forma de denunciar o genocídio que se pratica contra os pobres.
Ao lado dos autos de resistência, temos os desaparecimentos, como o de Amarildo. Em 2012 foram 5.900 no Estado do Rio de Janeiro. Nem todos os desaparecimentos são obras de grupos paramilitares ou grupos de extermínio que atuam marginalmente ao Estado. Há casos de doentes mentais ou pessoas em crises conjugais que desaparecem. Mas a maioria dos casos é de pessoas mortas e desaparecidas.
O desaparecimento de uma pessoa é uma perversidade com ela e com sua família, pois lhe retira a possibilidade do ritual do sepultamento, indispensável ao desenlace dos vínculos havidos ao longo da vida.
Viomundo — Como ficou sabendo que estava sendo alvo de processo por causa do quadro?
João Batista Damasceno — Fui intimado pelo corregedor a prestar informações sobre a colocação do quadro. Em seguida, recebi cópia da representação que me intimava para apresentação de defesa prévia.
A Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj) orientou-me a responder por meio do advogado por ela constituído. O advogado foi intimado para a sessão do Órgão Especial do tribunal marcada para esta segunda-feira, dia 10 de março.
Viomundo – O que será feito durante essa sessão?
João Batista Damasceno —  A representação feita pelo corregedor será apreciada pelos 25 membros do Órgão Especial do TJRJ. Ela pode ser recebida ou rejeitada. Se recebida, começa o processo disciplinar. Não fui intimado para a sessão, mas meu advogado foi.
Viomundo — Que tipo de ação foi aberta contra o senhor?
João Batista Damasceno — Trata-se de uma representação por suposto descumprimento de dever funcional. O corregedor diz que a obra de arte tem uma crítica à polícia e que pendurar tal quadro num gabinete é crítica a outra instituição e que tal comportamento é indevido a um juiz.
Ele fala na representação em crime de “vilipêndio a objeto de culto”, tipificado no artigo 208 do Código Penal. Mas não há ação penal. Isso é apenas retórica. Este foi o fundamento com o qual mandou apreender o quadro no gabinete do desembargador Siro Darlan.
O tribunal não pode agir de ofício em caso de crime. Ao Ministério Público é que caberia tal busca e apreensão, por meio de ação própria, se estivesse diante de efetivo crime.
De qualquer modo, o tratamento da questão demonstra como alguns tribunais se colocam ao lado das truculências do Estado e usa retórica para admoestar quem critica o Estado.
Num Estado Policial, o poder não é apenas da polícia. Num Estado Policial, todas as agências atuam com a lógica da polícia.
No caso em questão, está evidenciada anomalia no procedimento do tribunal. A representação é feita tão somente contra um juiz de primeiro grau, ainda que o quadro tenha permanecido por mais tempo no gabinete de um desembargador.
Mas, o desembargador – que se fosse o caso – deveria ser igualmente representado, não é destinatário da ação do corregedor.
Viomundo — Foi uma decisão do próprio tribunal ou a pedido de terceiros?
João Batista Damasceno — O tribunal age de ofício. No caso, é uma representação do corregedor. Mas ele o fez a partir da reação de alguns setores ligados ao aparado repressivo do Estado. O ofício do Deputado Flávio Bolsonaro, a reação da “bancada da bala”, a reação de algumas associações de policiais…
A presidenta do tribunal é filha de policial e isso também pesou na decisão. Há certa pessoalidade na questão, além do componente ideológico.
Mas entidades e pessoas ligadas à justificação da truculência do Estado endossaram a atuação do tribunal.
Viomundo – Que decisão o senhor imagina saia nesta segunda-feira?
João Batista Damasceno — Não creio no recebimento da representação. Agora, se acolhida, ela poderá ser ao final arquivada ou posso sofrer uma sanção administrativa, de natureza disciplinar. Tenho 20 anos de magistratura e em minha ficha funcional não consta nenhuma sanção. Ao contrário, tenho dois elogios.
Viomundo — O fato de ter doado dinheiro para a ceia dos sem-teto na Cinelândia, no Natal do ano passado, vai influenciar no julgamento?
João Batista Damasceno  – Não sou vítima da atuação dos que estão em outro espectro ideológico no seio da magistratura e da sociedade.
O que estamos vivenciando é um embate próprio dos interesses inconciliáveis.
Mas, claro, que minha posição ideológica, notadamente, pela afirmação do Estado de Direito neste momento de ascensão do Estado Policial e a participação de uma entidade que pugna pela difusão da cultura jurídica democrática, influencia o posicionamento daqueles que se alinham com posições jurídico-político-ideológicas adversas.
Viomundo – Como qualifica essa ação contra o senhor?
João Batista Damasceno — A censura a obra de arte é inconstitucional. Igualmente inconstitucional é a ameaça de processo disciplinar, pois viola o direito à livre manifestação do pensamento.
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Carta de repúdio enviada pelo desembargador  Siro Darlan aos colegas por ocasião da ação do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro contra o juiz João Batista Damasceno
Colegas Magistrados.
Em nome de Deus muitas guerras “santas” fraticidas foram declaradas e em nome da Justiça tenebrosas injustiças são praticadas. Assim como Deus é a Luz do Mundo, a Justiça deve ser o farol de segurança do respeito ás regras de convivência humana traçadas pela Constituição que foi escrita para a sociedade como garantia do equilíbrio entre os desiguais e o respeito ás diferenças.
Precisamos estar atentos para os movimentos que estão se proliferando de perseguição a determinados magistrados, colegas de primeiro grau, em razão de seus posicionamentos judiciais, pessoais, filosóficos ou doutrinários.
A independência do juiz é de natureza jurídico-administrativa, fazendo parte da relação do juiz com o Estado. Assim como as demaisgarantias da magistratura, está inserida num amplo contexto, que corresponde à independência do Poder Judiciário e à imparcialidade do magistrado.
“Da dignidade do juiz depende a dignidade do direito. O direito valerá, em um país e em um momento histórico determinado, o que valham os juízes como homens. No dia em que os juízes têm medo, nenhum cidadão pode dormir tranquilo” (Eduardo Couture).
A independência do juiz, primeiro, é uma garantia do próprio Estado de Direito, pelo qual se atribuiu ao Poder Judiciário a atribuição de dizer o direito, direito este que será fixado por normas jurídicas elaboradas pelo Poder Legislativo, com inserção, ao longo dos anos, de valores sociais e humanos, incorporados ao direito pela noção de princípios jurídicos.
A independência do juiz, para dizer o direito, é estabelecida pela própria ordem jurídica como forma de garantir ao cidadão que o Estado de Direito será respeitado e usado como defesa contra todo o tipo de usurpação. Neste sentido, a independência do juiz é, igualmente, garante do regime democrático.
Importante, ademais, destacar que a questão da independência dos juízes tratou-se mesmo de uma conquista da cidadania, pois nem sempre foi a independência um atributo do ato de julgar.
Dalmo de Abreu Dallari, assim se pronuncia a respeito:
“Essa ideia de independência da magistratura não é muito antiga. Há quem pense que isso acompanhou sempre a própria ideia de magistratura – eu ouvi uma vez alguma coisa assim no Tribunal de Justiça de São Paulo – o que é um grande equívoco. São fatos, fenômenos novos, situações novas, que estão chegando há pouco e que provocam crise, provocam conflitos.
Paralelamente a isso verifica-se, nesse ambiente de mudanças o crescimento da ideia de direitos humanos. Há um aspecto da história da história da magistratura que eu vou mencionar quase que entre parênteses, é uma coisa que corre paralelamente à história europeia, mas fica lá num plano isolado que é o aparecimento de uma magistratura independente, de fato independente nos Estados Unidos.
É oportuno lembrar a atitude política dos Estados Unidos durante  todo século XIX, ficando numa posição de isolamento do resto do mundo, sem participar de guerras ou alianças. Também o seu direito tinha outro fundamento, pois era basicamente o direito costumeiro e por isso não serefletiu nos direitos de estilo e tradição romanística, mas é muitointeressante esse aspecto da história dos Estados Unidos.”
Ora, não há dúvida que essa garantia vem sendo solapada através de campanhas de desvalorização dos profissionais da justiça, através da mídia comprometida e de políticos interessados na impunidade e no enfraquecimento do judiciário. Essa campanha acaba gerando juízes medrosos, covardes e acanhados, com medo de um necessário ativismo judicial, onde através de decisões corajosas e independentes reflitam a verdadeira independência do Poder Judiciário e não uma subserviência aos mais poderosos midiática e economicamente.
Mas quando essa pressão ocorre dentro de nossa Casa de Justiça, estamos dando um tiro no pé e armando nossos adversários com argumentos  insuperáveis. Desse modo precisamos acompanhar de perto e com interesse na proteção da magistratura como um todo. As ações, sobretudo as de iniciativa da Corregedoria doTribunal de Justiça que vem tentando amedrontar e calar juízes quedemonstram com mais efervescência essa independência.
Magistrados estão sendo chamados a prestar esclarecimentos por suas decisões judiciais, manifestações acadêmicas e outras que não se enquadram no modelo pré-determinado e isso é inaceitável e  uma verdadeira agressão que precisa cessar em respeito a toda magistratura fluminense.
Desmandos administrativos, comportamentos não éticos ou condutas negligentes com nossos deveres constitucionais e funcionais, devem sempre ser corrigidas, seja no âmbito do Controle Interno, seja através do próprio Controle Social; mas a perseguição sub-reptícia, a ameaça de procedimentos punitivos ou a própria instauração de processos tão somente  em razão de decisões proferidas no âmbito do processo judicial ou em razão de opiniões acadêmicas, refogem inteiramente dos próprios princípios republicanos que fundamentam a Constituição da República.
A independência do juiz é condição basilar para a garantia dos direitos fundamentais e não podemos deixar que esta ou aquela administração se valha de seu mandato temporário e fugaz para solapar  através  de um terrorismo administrativa ospróprios pilares do Estado Democrático de Direito.
Portanto, nobre Colega, a vigilância é permanente e cabe a nos esta vigilância.
Siro Darlan