quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Fábio Konder Comparato

E agora, Brasil?
Fábio Konder Comparato



A Corte Interamericana de Direitos Humanos acaba de decidir que o Brasil descumpriu duas vezes a Convenção Americana de Direitos Humanos. Em primeiro lugar, por não haver processado e julgado os autores dos crimes de homicídio e ocultação de cadáver de mais 60 pessoas, na chamada Guerrilha do Araguaia. Em segundo lugar, pelo fato de o nosso Supremo Tribunal Federal haver interpretado a lei de anistia de 1979 como tendo apagado os crimes de homicídio, tortura e estupro de oponentes políticos, a maior parte deles quando já presos pelas autoridades policiais e militares.





O Estado brasileiro foi, em conseqüência, condenado a indenizar os familiares dos mortos e desaparecidos.





Além dessa condenação jurídica explícita, porém, o acórdão da Corte Interamericana de Direitos Humanos contém uma condenação moral implícita.





Com efeito, responsáveis morais por essa condenação judicial, ignominiosa para o país, foram os grupos oligárquicos que dominam a vida nacional, notadamente os empresários que apoiaram o golpe de Estado de 1964 e financiaram a articulação do sistema repressivo durante duas décadas. Foram também eles que, controlando os grandes veículos de imprensa, rádio e televisão do país, manifestaram-se a favor da anistia aos assassinos, torturadores e estupradores do regime militar. O próprio autor destas linhas, quando ousou criticar um editorial da Folha de S.Paulo, por haver afirmado que a nossa ditadura fora uma “ditabranda”, foi impunemente qualificado de “cínico e mentiroso” pelo diretor de redação do jornal.





Mas a condenação moral do veredicto pronunciado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos atingiu também, e lamentavelmente, o atual governo federal, a começar pelo seu chefe, o presidente da República.





Explico-me. A Lei Complementar nº 73, de 1993, que regulamenta a Advocacia-Geral da União, determina, em seu art. 3º, § 1º, que o Advogado-Geral da União é “submetido à direta, pessoal e imediata supervisão” do presidente da República. Pois bem, o presidente Lula deu instruções diretas, pessoais e imediatas ao então Advogado-Geral da União, hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal, para se pronunciar contra a demanda ajuizada pela OAB junto ao Supremo Tribunal Federal (argüição de descumprimento de preceito fundamental nº 153), no sentido de interpretar a lei de anistia de 1979, como não abrangente dos crimes comuns cometidos pelos agentes públicos, policiais e militares, contra os oponentes políticos ao regime militar.





Mas a condenação moral vai ainda mais além. Ela atinge, em cheio, o Supremo Tribunal Federal e a Procuradoria-Geral da República, que se pronunciaram claramente contra o sistema internacional de direitos humanos, ao qual o Brasil deve submeter-se.





E agora, Brasil?





Bem, antes de mais nada, é preciso dizer que se o nosso país não acatar a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, ele ficará como um Estado fora-da-lei no plano internacional.





E como acatar essa decisão condenatória?





Não basta pagar as indenizações determinadas pelo acórdão. É indispensável dar cumprimento ao art. 37, § 6º da Constituição Federal, que obriga o Estado, quando condenado a indenizar alguém por culpa de agente público, a promover de imediato uma ação regressiva contra o causador do dano. E isto, pela boa e simples razão de que toda indenização paga pelo Estado provém de recursos públicos, vale dizer, é feita com dinheiro do povo.





É preciso, também, tal como fizeram todos os países do Cone Sul da América Latina, resolver o problema da anistia mal concedida. Nesse particular, o futuro governo federal poderia utilizar-se do projeto de lei apresentado pela Deputada Luciana Genro à Câmara dos Deputados, dando à Lei nº 6.683 a interpretação que o Supremo Tribunal Federal recusou-se a dar: ou seja, excluindo da anistia os assassinos e torturadores de presos políticos. Tradicionalmente, a interpretação autêntica de uma lei é dada pelo próprio Poder Legislativo.





Mas, sobretudo, o que falta e sempre faltou neste país, é abrir de par em par, às novas gerações, as portas do nosso porão histórico, onde escondemos todos os horrores cometidos impunemente pelas nossas classes dirigentes; a começar pela escravidão, durante mais de três séculos, de milhões de africanos e afrodescendentes.





Viva o Povo Brasileiro!

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

“PRIMUM VIVERE” OU AS BATATAS DE MACHADO DE ASSIS

“PRIMUM VIVERE” OU AS BATATAS DE MACHADO DE ASSIS

José Osterno Campos de Araújo

Procurador Regional da República

Mestre em Ciências Criminais

Professor do UniCEUB





“Não faço nada demais,

apenas mato.

É uma questão de sobrevivência”1







Em verdade, é o crime quem cria a lei ou, ao contrário, é a lei quem cria o crime? Quem, efetivamente, é o criador? E quem a criatura?



2. Passa-se, desde logo, a palavra à voz autorizada de Paulo Queiroz, o qual, sem meias palavras, responde2:



“Assim, se não há crime nem pena sem lei anterior que os defina, segue-se que, por mais que uma conduta humana seja moralmente reprovável (v.g., o incesto), se não houver lei que a declare criminosa, criminosa não é, sendo jurídico-penalmente irrelevante. É a lei, portanto, que cria o crime, é a lei que cria o criminoso. Numa palavra: crime é só o que o legislador diz que é”.



3. Mais à frente, referindo-se à teoria do etiquetamento (“labeling approach”), arremata3:



“Para essa teoria, o delito carece de consistência material, mas, mais do que isso, são os processos de reação social, é dizer, o controle social mesmo, que criam a conduta desviada, ou seja, a conduta não é desviada em si (qualidade negativa inerente à conduta), mas em razão de um processo social, arbitrário e discriminatório, de reação e seleção”.



4. Não merece reparo a fala do penalista.



5. Toma-se, pois, o crime de homicídio, dito crime rei, na expressão de Laerte Marzagão Júnior4, para, com Vinícius Bittencourt5, perguntar: “É possível matar com a lei?”.



6. Sabe-se - tão-somente por livre opção do legislador - a conduta de matar alguém não configura crime em todas as hipóteses ocorrentes.



7. Matar alguém, por exemplo, não é crime, desde que se mate em observância à regra do artigo 5º, inciso XLVII, alínea “a”, da Constituição Federal e normas legais correlatas. Ou seja, pode-se matar - não criminosamente - desde que o matador - diz a lei - seja o Estado. Ainda, matar alguém não constitui crime, se o resultado morte for consequência de reação permitida a injusta agressão, atual ou iminente, a direito próprio ou de terceiro. Ou seja, pode-se matar - não criminosamente - desde que mediante conduta considerada - pela lei - como lícita. Por fim, matar alguém também não é crime, se a conduta for praticada sob a influência de irresistível coação moral. Ou seja, pode-se matar – mais uma vez não criminosamente – é o que afirma a lei, desde que se atue sem culpa lato senso.



8. “O direito não existe”, diz mais Paulo Queiroz6. Parafraseando o pensador do direito, diz-se: o crime não existe. O crime não existe, sem que seja parido pela lei, parto que inaugura sua existência, existência daquilo (o crime) que antes (da lei) não existia7. De fato, o crime não existe sem a lei, fora da lei e antes da lei. À semelhança do rei Midas, a lei toca o fato e cria o crime. É a lei, e somente ela, quem diz o que é crime.



9. Repete-se, então, a pergunta de Vinícius Bittencourt: “É possível matar com a lei?”8, agora para imaginar contexto histórico-social diverso do em que, atualmente, se vive. Imagine-se o mundo daqui a cento e cinquenta ou duzentos anos. Outra época, outros valores, outras necessidades. A população aumentada, em muito. Os espaços e oportunidades escasseados. Um tanto de gente na disputa de um metro quadrado de chão. Outro tanto na luta por um pouco de comida. A vida, sobremaneira, dificultada pelo excesso de pessoas. A própria subsistência da sociedade global ameaçada pela exacerbação do contingente populacional.



10. Neste (novo) mundo, a eliminação de vidas humanas não seria benéfica ao convívio social? A morte, de alguns, não facilitaria a convivência e subsistência dos demais? Não seria, assim, oportuna e até necessária a descriminalização do homicídio? Pelo menos até a solução do ingente problema do excesso populacional.



11. A vida, neste contexto imaginário, passaria de essencial a prejudicial à convivência e à subsistência social, desvestindo-se assim da roupagem de bem jurídico-penal e não mais merecendo a tutela da lei penal. O que antes era crime - e crime rei, diz Laerte Marzagão Júnior - não mais seria, neste futuro imaginado, por mera opção legal. Também o homicídio não detém “consistência material”9 de crime, de modo dissociado da lei.



12. Neste futuro - não vindouro, espera-se – a morte (de uns) daria vida à vida (de outros).



13. É do que trata Machado de Assis, no episódio “Ao vencedor, as batatas”, mais precisamente no capítulo VI do romance “Quincas Borba”, episódio relembrado por Andrey do Amaral, em seu “O Máximo e as Máximas de Machado de Assis”10, com estrita observância às palavras do Bruxo do Cosme Velho:



“ - Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é a condição da sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípio universal e comum. Daí o caráter conservador e benéfico da guerra. Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”.



14. No episódio das “batatas”, bem como na hipótese do futuro imaginado, chega-se à necessidade de se matar para se viver. Numa palavra: “Primum vivere”.



15. Na “advertência” a nova edição do romance “Helena”, Machado de Assis escreve: “cada obra pertence a seu tempo”11. Em nova paráfrase, agora do construtor de vidas imaginárias, pode-se, então, afirmar: cada crime pertence a seu tempo.



16. Daqui a cento e cinquenta ou duzentos anos, será crime - ainda - matar alguém?



17. A resposta, no futuro, à lei. E somente a ela.


1Trecho do poema “Palavras de um Marginal” de José Osterno Campos de Araújo


2QUEIROZ, Paulo. Direito penal. Parte geral. 6. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010, p. 12.


3Ob. cit. p. 175.


4MARZAGÃO JÚNIOR, Laerte I. Homicídio crime rei. Coordenador. São Paulo: Editora Quartier Latin, 2009.


5BITTENCORT, Vinícius. O criminalista. Romance da advocacia e dos crimes perfeitos. 7. ed. Niterói: Impetus, 2010.


6Ob. cit. p. 10.


7Pense-se na (futura e possível ?!) criminalização do consumo de carne vermelha, à vista da alta e intolerável incidência de mortes decorrentes de elevado nível de colesterol nas pessoas. O consumo de carne vermelha, historicamente, sempre existiu, como fato. Já a consideração de tal fato como crime passa a existir tão-somente a partir da superveniente edição (“parto”) da lei criminalizadora (aqui, no sentido de criar (parir) o crime). A mesma situação poderia ocorrer, no caso de eventual criminalização da aquisição de veículos automotores, dada a exacerbação de mortes decorrentes de acidentes de trânsito.


8BITTENCORT, Vinícius. O criminalista. Romance da advocacia e dos crimes perfeitos. 7. ed. Niterói: Impetus, 2010.


9QUEIROZ, Paulo. Ob. cit. p. 175.


10AMARAL, Andrey do. O máximo e as máximas de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Editora Ciência Moderna, 2008, p. 149-150.


11Apud AMARAL, Andrey do. O máximo e as máximas de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Editora Ciência Moderna, 2008, p. 101.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Ficção - entrevista com Nietzsche

Retirado do blog do Paulo Queiroz.


1)Apesar de não ter se dedicado especificamente ao direito, o direito não é um tema estranho à sua filosofia…

NIETZSCHE: Certamente. O que se poderia chamar de a minha filosofia do direito está em grande parte na minha genealogia da moral. De todo modo, como para mim o direito é uma continuação da moral por outros meios, e como a moral é um dos meus temas mais frequentes, penso que parte importante da minha filosofia lhe é aplicável.

2)O que o senhor entende por direito?

NIETZSCHE: Parece-me que o que escrevi sobre a verdade é perfeitamente aplicável ao direito. Eis o que escrevi (fazendo as adaptações necessárias) num pequeno ensaio (verdade e mentira): “O que é, pois, o direito? Um exército móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, numa palavra, uma soma de relações humanas que foram realçadas poética e retoricamente, transpostas e adornadas, e que, após uma longa utilização, parecem a um povo consolidadas, canônicas e obrigatórias: o direito é uma ilusão da qual se esqueceu que ele assim o é”. Ou, se preferir, eu poderia me valer também do que escrevi sobre a moral para dizer: “Minha sentença principal: não há nenhum fenômeno jurídico, mas, antes, apenas uma interpretação jurídica desses fenômenos. Essa interpretação é, ela própria, de origem extrajurídica”.

Enfim, o que os senhores pretendem como sendo o Direito é apenas uma palavra para a vontade de poder, de sorte que quem tem o poder cria o direito; quem não o tem o sofre. Afinal, só é direito o que o poder reconhece como tal. Basta pensá-lo e contextualizá-lo historicamente.

3)Mas isso não é uma excessiva relativização? Se for assim, então tudo pode ser direito (matar, roubar, estuprar etc.).

NIETZSCHE: Mas tudo isso é e sempre foi praticado em nome do direito, de ontem e de hoje. O que é, afinal, o aborto legal senão uma autorização para matar um ser indefeso? O que é a pena de morte senão um homicídio? O que é a legítima defesa senão uma legitimação para ferir, matar etc.? E o que é o agente infiltrado senão uma autorização para cometer toda sorte de crimes? O que são as penas e medidas de segurança senão seqüestros legais?

A minha resposta é, pois, sim! Matar, roubar, estuprar pode ser conforme o direito (ou contra o direito), inclusive porque o que seja “matar”, “roubar”, “estuprar” e as possíveis formas de legitimação dessas ações não estão previamente dadas, apesar de existir grande consenso sobre tais assuntos. Kelsen (in teoria pura) tinha razão, portanto, quando dizia que o absurdo pode ser direito.

Enfim, é o poder (um conjunto de relações histórica e permanentemente em construção) que, em última análise, cria e extingue estados, promulga leis e revoga constituições, institui exércitos e parlamentos, declara a guerra e a paz, forja deuses e demônios, distingue mito e realidade, saber e ignorância, bem e mal, verdade e mentira, direito e torto.

4)Se o senhor estiver correto, então uma sociedade de criminosos também teria direito?

NIETZSCHE: Sem dúvida, embora não seja o direito oficial ou o tipo de direito que o senhor gostaria de ver instituído/reconhecido, possivelmente. Se o senhor tiver alguma dúvida quanto a isso, consulte, a propósito, o estatuto do PCC (Primeiro Comando da Capital), que tem como princípios declarados: “1. Lealdade, respeito e solidariedade acima de tudo ao Partido. 2. A luta pela liberdade, justiça e paz. 3. A união da luta contra as injustiças e a opressão dentro das prisões.” Diz ainda (9) que “o partido não admite mentiras, traição, inveja, cobiça, calúnia, egoísmo, interesse pessoal, mas, sim, a verdade, a fidelidade, a hombridade, a solidariedade e o interesse como o bem de todos, porque somos um por todos e todos por um”.

Repito que o direito é um conjunto móvel de metáforas e metonímias produzidas pelas relações de poder; ou, como diz Pierre Bourdieu (in o poder simbólico), “o que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras”.

E mais: não seria direito o direito antigo pelo só fato de admitir a escravidão e semelhantes como instituições jurídicas? O direito iraniano (e de outros tantos países) não teria o status de direito pelo só fato de, entre outras coisas, criminalizar o homossexualismo, punir o adultério com pena de morte etc.? Seria possível pensar o direito para além do tempo e do espaço e das relações de poder que o constituem? Na verdade, aquilo que designamos por direito pode ser eventualmente tão ou mais violento ou cruel quanto o que se pretende combater por meio dele (as ilegalidades).

5)Alguns autores defendem atualmente que, apesar da vagueza da linguagem, dos prejuízos do intérprete etc., existiria a única resposta correta ou, ao menos, a resposta correta. Como o senhor vê isso?

NIETZSCHE: lia há pouco o império do direito do Sr. Ronald Dworkin. O que temos ali? O juiz Hércules é uma alegoria (dela também me vali no meu Zaratustra) por meio da qual o Sr. Dworkin expõe suas próprias ideias sobre o que é o direito e o que ele entende por resposta correta. Hércules e Dworkin são, pois, uma só e mesma pessoa; logo, os limites de Hércules são os limites do homem Dworkin (limites morais, religiosos, jurídicos, filosóficos, políticos etc.).

E por recorrer (também) a uma fábula (a fábula do juiz perfeito) o autor, embora fundamente suas posições juridicamente, conclui fabulosamente (existe uma resposta correta e essa resposta é dada por um juiz fabuloso, o juiz Hércules, isto é, uma resposta dada pelo próprio Dworkin). Conclusão: a resposta correta proposta por Hércules é a resposta correta na perspectiva de Dworkin. Não é, obviamente, nem a única, nem a melhor, nem a mais correta, mas apenas isso: a resposta correta de Dworkin (na verdade, o que ele propõe me pareceu essencialmente um procedimento), inclusive porque a correção da resposta não é, a rigor, uma qualidade da resposta mesma, mas uma relação entre o intérprete e a resposta; logo, mudando o intérprete, muda, consequentemente, a resposta que se pretende por correta. Porque o que quer que possa ser pensado, por quem quer que possa ser pensado, como quer que seja pensado, sempre poderá ser pensado de diversas outras formas e, pois, conduzir a resultados também diversos.

Finalmente, a adoção de um determinado procedimento (método etc.) não é garantia de uma mesma resposta, nem será (só por isso) necessariamente correta ou adequada. Se fosse, no futuro, os atuais juízes poderiam ser substituídos por sofisticados programas de computador; poderíamos, inclusive, em homenagem a Dworkin, chamá-los de Hércules. E mais: decisões tecnicamente corretas não são forçosamente decisões justas (e vice-versa).

Enfim, Dworkin parece não se dar conta de que “nossos valores são introduzidos nas coisas pela interpretação, que todo sentido é necessariamente sentido de relação e perspectiva, enfim, que todo sentido é vontade de poder” (in vontade de poder). A minha hipótese é a de que o próprio “in-divíduo” é multiplicidade. Exatamente por isso, tudo que entra na consciência como unidade já é imensamente complicado: temos sempre uma aparência de unidade (in vontade de poder). Naturalmente que Dworkin não ignora semelhante crítica (ele a chama de “ceticismo exterior”), mas a considera “tão verdadeira quanto inútil”.

O que Dworkin pretende é uma ingenuidade, portanto. Repito aqui o que disse no meu crepúsculo dos ídolos: Desconfio de todos os sistematizadores e os evito; a vontade de sistema é uma falta de retidão!



Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em Röcken, Prússia, em 1844 e morreu em Weimar, em 1900. A entrevista – fictícia, obviamente – foi imaginada a partir de seus textos (nem todos citados).

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

“A concepção vingativa da pena: castigo como violação da norma penal”.

“A concepção vingativa da pena: castigo como violação da norma penal”.

Por Rafael Silva de Faria

“Quem procura o fundamento jurídico da pena deve também procurar, se é que já não encontrou, o fundamento jurídico da guerra.” (TOBIAS BARRETO apud CARVALHO)


Grande arauto das liberdades individuais, o saudoso EVANDRO LINS E SILVA, em depoimento dado ao Centro de Pesquisas e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), no qual originou a obra “O salão dos passos perdidos”, asseverava que “a prisão é realmente monstruosa, e eu tenho verdadeira alergia à cadeia. A política criminal hoje dominante no pensamento científico dos estudiosos do direito penal é: prisão só ultima ratio, só em último caso.” (p. 214)
Na sequência o eminente criminalista, ex –ministro do STF, ao discorrer sobre a pena de morte e sua ineficácia, porquanto não diminuiria a criminalidade, aduzia que “na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipar um pouco ao próprio delinqüente.” (p. 215)
É de tempos imemoriais a concepção de que as penas para os que infringem a norma penal lato sensu (pré-positivação) visavam retribuir o ‘mal pelo mal’.
NORBERTO BOBBIO, em escrito sobre apena de morte de 1981, revela a historicidade da idéia do ‘olho por olho, dente por dente’ em PLATÃO, nesses termos:
“(...) tomemos um livro clássico, o primeiro grande livro sobre a justiça de nossa civilização ocidental: as leis, os nómoi, de Platão. No livro IX, Platão dedica algumas páginas ao problema das leis penais. Reconhece que ‘a pena deve ter a finalidade de tornar melhor’. Mas aduz que, ‘se se demonstrar que o delinqüente é incurável, a morte será para ele o menor dos males. (...) Falando precisamente de homicidas voluntários, Platão diz em certo momento que eles devem ‘necessariamente pagar a pena natural’, ou seja, a de ‘padecer o que fizeram’ (870 e). Chamo a atenção para o adjetivo ‘natural’, e para o princípio de ‘padecer’ o que se fez. Esse princípio, que nasce da doutrina da reciprocidade – que é dos Pitagóricos (mais antiga ainda, portanto, que a de Platão) e que será formulada pelos juristas medievais e repetida durante séculos com a famosa expressão segundo a qual o malum passions deve corresponder a malum actions – atravessa toda a história do direito penal e chega até nós absolutamente inalterado.” (BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 1992, p. 161/62).
JUAREZ CIRINO DOS SANTOS explica que a literatura penal possui várias explicações para a sobrevivência histórica da função retributiva da pena criminal. Primeiro, a psicologia popular, regida pelo talião, constitui a base antropológica da pena; segundo, a tradição religiosa judaico-cristã acidental apresenta a imagem retributiva-negativa da justiça divina; terceiro, a filosofia idealista ocidental é retributiva (Kant, Hegel, Jakobs, Feurbach); quarto, o discurso retributivo se baseia na lei penal que consagra o princípio da retribuição, insculpido no art. 59 do Código penal (o legislador determina ao juiz aplicar a pena conforme o necessário e suficiente para a reprovação do crime). (CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Teoria da pena. Fundamentos políticos e aplicação judicial, 2005, p. 04)
O direito penal arcaico, ou seja, anterior a Revolução Francesa, tinha como função da pena tão-somente a retribuição, conquanto inquestionável o caráter retributivo da pena hodiernamente (timbre real e inegável); a pena que se detém na simples retributividade, em nada se distingue da vingança, convertendo-se seu modo em seu fim (BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1996, p. 100).
THIAGO FABRES DE CARVALHO, em ensaio jurídico sobre o filme “Abril Despedaçado”, que relata história de famílias que se exterminam geração após geração, empreende uma ‘antropologia hermenêutica da violência’ relatada no filme. Amparado nas lições de François Ost, FABRES DE CARVALHO ensina que “o crime que a vingança pune, explica René Girardi, ‘quase nunca se concebe a si mesmo como primeiro; pretende ser já vingança de um crime mais original’.” (MORAIS DA ROSA, Alexandre; FABRES DE CARVALHO, Thiago. Processo penal eficiente e ética da vingança: em busca de uma criminologia da não violência. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen júris, 2010, p. 105)
O Direito penal, de todos os ramos do direito, é o que mais oprime por violar o mais importante bem jurídico individual – a liberdade -; ademais, por selecionar indivíduos que estão à margem da sociedade, denunciado pela Criminologia Crítica (“A intervenção [penal] busca manter as regras formais do Mercado”- MORAIS DA ROSA), o Direito repressor demarca uma perpetuação e perene situação de violência, por meio, precipuamente das penas corporais, que estigmatiza e ‘dessocializa’ qualquer cidadão que cai no sistema punitivo.
Segundo DERRIDA, “O próprio surgimento da justiça e do direito, o momento instituidor, fundador e justificante do direito, implica uma força performativa, isto é, sempre uma força interpretadora e um apelo à crença. (...) a operação de fundar, inaugurar, justificar o direito, fazer a lei, consistiria num golpe de força, numa violência performativa e, portanto interpretativa que, nela mesma, não é nem justa nem injusta, e que nenhuma justiça, nenhum direito prévio e anteriormente fundador, nenhuma fundação pré-existente, por definição, poderia nem garantir nem contradizer ou invalidar.” (DERRIDA apud MORAIS DA ROSA; FABRES DE CARVALHO, ob. cit. p.121)
Nessa esteira, do surgimento do direito e justiça como apelo à crença, destacado por DERRIDA, encontra-se, com o recrudescimento das penas e expansão do direito penal, a função simbólica da pena. O senso comum crê que o direito penal seja panacéia, olvidando-se que o apenado, cedo ou tarde, retornará ao seio social, formando-se o ciclo de violência (tão bem retratado no ensaio de Fabres de Carvalho), agora institucionalizado pelo Estado.
Desse modo, surge a indagação feita por LOUK HULSMAN: “(...) o homem é naturalmente bom ou mau? O homem tem necessidade de se vingar, de responder à violência com violência? (...) Afirmo que se o espírito de vingança devesse necessariamente se expressar, poderia ser canalizado de forma diferente da que ocorre no atual sistema punitivo.” (HULSMAN, Louk. CELIS, Jaqueline Bernat de. Penas Perdidas. O sistema penal em questão. Trad. Maria Lucia Karam. Ed. Luam, p. 119)
HULSMAN, expoente do abolicionismo penal, prossegue alegando que as formas mais benignas de reação ao crime exsurgiram quando os poderes se centralizaram e não mantêm qualquer tipo de ligação com desejo de vingança. A antropologia e a história ensinam que não é a duração do sofrimento inflingido que apaziguam os que clamam por vingança, mas sim a dimensão simbólica da pena, ou seja, o sentido de reprovação social do fato que lhe é atribuído (HULSMAN, Louk. CELIS, Jaqueline Bernat de. Ob. cit. p. 120/21).
Para ALICE BIANCHINI, “O que importa, para a função simbólica, é manter um nível de tranqüilidade na opinião pública, fundado na impressão de que o legislador se encontra em sintonia com as preocupações que emanam da sociedade. Criam-se, assim, novos tipos penais, incrementam-se penas, restringem-se direitos sem que, substancialmente, tais opções representem perspectivas de mudança no quadro que determinou a alteração (ou criação) legislativa. Produz-se a ilusão que algo foi feito.” (BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. São Paulo: Ed. RT, 2002, p. 124)
O espírito de vingança, entrelaçado com a função simbólica da pena, cegam o senso comum (inclusive do legislador ordinário), de modo que o instinto primitivo de vingança aflora sempre que a grande mídia noticia crimes de grande repercussão social, fazendo com que a vingança privada, literalmente, ressurja (Vide caso Nardoni: a população fez vigília em frente ao fórum no dia do julgamento gritando palavras de ordem e clamando por ‘justiça’ com, inclusive, linchamento moral do defensor do casal).
Daí o questionamento de FABRES DE CARVALHO: “Como justificar, portanto, o imaginário social punitivo, o anseio presente em todos os grupos sociais de esconjurar a violência mortífera, de criar mecanismos capazes de transformar o desejo de vindicta numa instituição social susceptível de limpar a mácula da ofensa, de compensar o prejuízo sofrido, e assim restaurar a concórdia no seio do grupo? Quais as fontes do imaginário punitivo, e em que medida podem atuar para restabelecer a paz no interior da comunidade? Quais as relações, portanto, entre pena e memória, entre pena e recordação da lei, afinal entre pena e vingança? Como superar ou transcender o castigo como puro e simples desejo de vingança cega e mortífera?” (MORAIS DA ROSA, Alexandre; FABRES DE CARVALHO, Thiago. Ob. cit. p. 131/32).
LOUK HULSMAN entende que “O sistema penal é especificamente concebido para fazer mal. (...) O sistema penal (...) produz violência, (...) na medida em que, independente da vontade das pessoas que o acionam, ele é estimatizante, ou seja, gera uma perda de dignidade. É isso a estigmatização... (...)”.(HULSMAN, Louk. CELIS, Jaqueline Bernat de. Ob. cit. p. 88).
SALO DE CARVALHO é categórico quanto ao efeito inverso da pena criada para conter a barbárie medieva de modo que “(...) as ciências criminais – concebidas como integração entre as técnicas dogmáticas do direito penal e processual penal, da criminologia e da política criminal -, direcionadas a anular a violência do bárbaro e a afirmar os ideais civilizados, ao longo do processo de constituição (e de crise) da Modernidade, produziram seu oposto, ou seja, colocaram em marcha tecnologia formatada pelo uso desmedido da força, cuja programação, caracterizada pelo alto poder destrutivo, tem gerado inominável custos de vidas humanas. O motivo deste aparente paradoxo é apresentado por Morin: ‘La barbárie no es solo um elemento que acompaña a la civilización, sino que la integra. La civilización produce barbárie(...)’.3
Possível, portanto, neste quadro, concordar com Luigi Ferrajoli no sentido de que “a história das penas é seguramente mais horrenda e infame para a humanidade que a própria história dos delitos’.4” (CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010 p. xxii).
Nesse cenário de ‘castigo institucionalizado’ (FABRES DE CARVALHO), e à guisa de conclusão, mister trazer à tona que a missão do Direito penal não pode ser a de realizar vinganças, que se perpetuam, inexoravelmente no tempo, mas tão-somente tutelar bens jurídicos, não perdendo de vista o Princípio da intervenção mínima (ultima ratio)e seus consectários, tais quais, os Princípios da subsidiariedade e fragmentariedade.
Ademais, o caráter retributivo da pena (retribuir para expiar um mal [crime] com outro mal [pena]) pode ser considerado ato de fé, mas não é democrático nem científico, porquanto, no Estado Democrático de Direito o poder é exercido em nome do povo, e não em nome de Deus, e a pena como retribuição do crime se fundamenta num dado indemonstrável: a liberdade de vontade do ser humano, pressuposta no juízo de culpabilidade (CIRINO DOS SANTOS, Juarez, ob.cit., p. 05/06)
Importante destacar, a título de conclusão, o § 33 da obra “Humano, demasiado humano”, de NIETZSCHE, intitulado ‘Elementos da vingança’, que se amolda a tudo do que foi trabalhado até agora, nesses termos:
“A palavra Rache (vingança) se pronuncia tão depressa: parece quase como se não pudesse conter mais de uma raiz de conceito e de sentimento. (...) Como se todas as palavras não fossem bolsos em que se guardou ora isto, ora aquilo, ora várias coisas de uma vez!” (NIETZCHE, Friederich Wilhelm. Os pensadores. Obras incompletas. Humano, demasiado humano. 2ª ed. São Paulo: Abril cultural, 1978, p. 144)
Na sequência, divagando sobre a vingança, NIETZSCHE aduz que mister a distinção da vingança como um contragolpe defensivo que se desfecha quase sem querer, tal como um revide instintivo; do mesmo modo se procede contra pessoas que causam dano: uma meditação sobre a vulnerabilidade do outro e sua aptidão ao sofrimento é sua pressuposição: quer-se fazer mal. (ob. cit. p. 144)
Daí indaga NIETZSCHE:
“Se na primeira espécie de vingança era o medo do segundo golpe que tornava o contragolpe tão forte quanto possível. Aqui há quase total indiferença diante daquilo que o adversário fará; a força do contragolpe é determinada somente por aquilo que ele nos fez. E o que foi que ele fez? E de que nos serve que sofra agora, depois que nós sofremos por causa dele? Trata-se de uma restauração (...). Assim, por meio da pena judicial, tanto a honra privada com também a honra social são restauradas: isto é – a pena é vingança. – Há também nela, indubitavelmente, aquele outro elemento da vingança descrito em primeiro lugar, na medida que graças a ela a sociedade serve à sua autoconservação e desfere um contragolpe em legítima defesa. A pena quer impedir um novo dano, quer intimidar. Dessa maneira, ambos os elementos tão diferentes da vingança estão efetivamente vinculados na pena, e isso pode ser, talvez, o que mais atua no sentido de entreter aquela mencionada confusão de conceitos, em virtude da qual o indivíduo que se vinga costuma não saber o que quer propriamente.” (ob. Cit. p. 144/46)




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1996.

BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. São Paulo: Ed. RT, 2002.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 1992.

CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Teoria da pena. Fundamentos políticos e aplicação judicial, 2005.

HULSMAN, Louk. CELIS, Jaqueline Bernat de. Penas Perdidas. O sistema penal em questão. Trad. Maria Lucia Karam. Ed. Luam

MORAIS DA ROSA, Alexandre; FABRES DE CARVALHO, Thiago. Processo penal eficiente e ética da vingança: em busca de uma criminologia da não violência. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen júris, 2010.

NIETZCHE, Friederich Wilhelm. Os pensadores. Obras incompletas. Humano, demasiado humano. 2ª ed. São Paulo: Abril cultural, 1978.

SILVA, Evandro Lins e. O salão dos passos perdidos. Ed. Nova fronteira.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Responsabilidade civil objetiva. Prisão preventiva de pessoa inocente. Dever de indenizar

“Bar Bodega”. Responsabilidade civil objetiva. Prisão preventiva de pessoa inocente. Dever de indenizar
Celso de Mello

RE 385943/SP*

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

EMENTA: RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO (CF, ART. 37, § 6º). CONFIGURAÇÃO. “BAR BODEGA”. DECRETAÇÃO DE PRISÃO CAUTELAR, QUE SE RECONHECEU INDEVIDA, CONTRA PESSOA QUE FOI SUBMETIDA A INVESTIGAÇÃO PENAL PELO PODER PÚBLICO. ADOÇÃO DESSA MEDIDA DE PRIVAÇÃO DA LIBERDADE CONTRA QUEM NÃO TEVE QUALQUER PARTICIPAÇÃO OU ENVOLVIMENTO COM O FATO CRIMINOSO. INADMISSIBILIDADE DESSE COMPORTAMENTO IMPUTÁVEL AO APARELHO DE ESTADO. PERDA DO EMPREGO COMO DIRETA CONSEQÜÊNCIA DA INDEVIDA PRISÃO PREVENTIVA. RECONHECIMENTO, PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA LOCAL, DE QUE SE ACHAM PRESENTES TODOS OS ELEMENTOS IDENTIFICADORES DO DEVER ESTATAL DE REPARAR O DANO. NÃO-COMPROVAÇÃO, PELO ESTADO DE SÃO PAULO, DA ALEGADA INEXISTÊNCIA DO NEXO CAUSAL. CARÁTER SOBERANO DA DECISÃO LOCAL, QUE, PROFERIDA EM SEDE RECURSAL ORDINÁRIA, RECONHECEU, COM APOIO NO EXAME DOS FATOS E PROVAS, A INEXISTÊNCIA DE CAUSA EXCLUDENTE DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO PODER PÚBLICO. INADMISSIBILIDADE DE REEXAME DE PROVAS E FATOS EM SEDE RECURSAL EXTRAORDINÁRIA (SÚMULA 279/STF). DOUTRINA E PRECEDENTES EM TEMA DE RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO. ACÓRDÃO RECORRIDO QUE SE AJUSTA À JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE CONHECIDO E IMPROVIDO.

DECISÃO: O presente recurso extraordinário foi interposto contra decisão, que, proferida pelo E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, acha-se consubstanciada em acórdão assim ementado (fls. 259):

“Indenização pleiteada em favor de pessoa indevidamente envolvida em inquérito policial arquivado. Cabimento de danos materiais e morais. 1. Apesar da ausência de erro judiciário, o Estado tem o dever de assegurar ao cidadão o exercício dos direitos subjetivos outorgados na Constituição, com margem de segurança. 2. Inobservada aquela cautela, resulta configurada a responsabilidade objetiva e o dever de reparação devido à vítima de imputação descabida. 3. Embargos infringentes rejeitados.” (grifei)

O Estado de São Paulo, no apelo extremo em questão, alega a inexistência, na espécie, do nexo de causalidade material entre o evento danoso e a ação do Poder Público, eis que a “(...) demonstração de que a prisão provisória do autor, para fins averiguatórios, ocorreu nos estritos limites da lei, através de decisão judicial fundamentada e mantida pelo Tribunal em grau de ‘Habeas Corpus’, afigura-se como causa excludente de responsabilidade na medida em que rompe o nexo causal entre a ação do poder público e o evento danoso” (fls. 269 - grifei).

O exame destes autos convence-me de que não assiste razão ao Estado ora recorrente, quando sustenta - para descaracterizar a sua responsabilidade civil objetiva a respeito do evento danoso em causa - “que a prisão provisória do autor, para fins averiguatórios, ocorreu nos estritos limites da lei, através de decisão judicial fundamentada e mantida pelo Tribunal em grau de ‘Habeas Corpus’” (fls. 269).

Com efeito, a situação de fato que gerou o gravíssimo evento narrado neste processo (prisão cautelar de pessoa inocente) põe em evidência a configuração, no caso, de todos os pressupostos primários que determinam o reconhecimento da responsabilidade civil objetiva da entidade estatal ora recorrente.

Cumpre observar, no ponto, por oportuno, que a questão concernente ao reconhecimento do dever do Estado de reparar danos causados por seus agentes mereceu amplo debate doutrinário, que subsidiou, em seus diversos momentos, o tratamento jurídico que essa matéria recebeu no plano de nosso direito positivo.

Como se sabe, a teoria do risco administrativo, consagrada em sucessivos documentos constitucionais brasileiros, desde a Carta Política de 1946, revela-se fundamento de ordem doutrinária subjacente à norma de direito positivo que instituiu, em nosso sistema jurídico, a responsabilidade civil objetiva do Poder Público, pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, por ação ou por omissão (CF, art. 37, § 6º).

Essa concepção teórica - que informa o princípio constitucional da responsabilidade civil objetiva do Poder Público, tanto no que se refere à ação quanto no que concerne à omissão do agente público - faz emergir, da mera ocorrência de lesão causada à vítima pelo Estado, o dever de indenizá-la pelo dano pessoal e/ou patrimonial sofrido, independentemente de caracterização de culpa dos agentes estatais ou de demonstração de falta do serviço público, não importando que se trate de comportamento positivo ou que se cuide de conduta negativa daqueles que atuam em nome do Estado, consoante enfatiza o magistério da doutrina (HELY LOPES MEIRELLES, “Direito Administrativo Brasileiro”, p. 650, 31ª ed., 2005, Malheiros; SERGIO CAVALIERI FILHO, “Programa de Responsabilidade Civil”, p. 248, 5ª ed., 2003, Malheiros; JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, “Curso de Direito Administrativo”, p. 90, 17ª ed., 2000, Forense; YUSSEF SAID CAHALI, “Responsabilidade Civil do Estado”, p. 40, 2ª ed., 1996, Malheiros; TOSHIO MUKAI, “Direito Administrativo Sistematizado”, p. 528, 1999, Saraiva; CELSO RIBEIRO BASTOS, “Curso de Direito Administrativo”, p. 213, 5ª ed., 2001, Saraiva; GUILHERME COUTO DE CASTRO, “A Responsabilidade Civil Objetiva no Direito Brasileiro”, p. 61/62, 3ª ed., 2000, Forense; MÔNICA NICIDA GARCIA, “Responsabilidade do Agente Público”, p. 199/200, 2004, Fórum, v.g.), cabendo ressaltar, no ponto, a lição expendida por ODETE MEDAUAR (“Direito Administrativo Moderno”, p. 430, item n. 17.3, 9ª ed., 2005, RT):

“Informada pela ‘teoria do risco’, a responsabilidade do Estado apresenta-se hoje, na maioria dos ordenamentos, como ‘responsabilidade objetiva’. Nessa linha, não mais se invoca o dolo ou culpa do agente, o mau funcionamento ou falha da Administração. Necessário se torna existir relação de causa e efeito entre ação ou omissão administrativa e dano sofrido pela vítima. É o chamado nexo causal ou nexo de causalidade. Deixa-se de lado, para fins de ressarcimento do dano, o questionamento do dolo ou culpa do agente, o questionamento da licitude ou ilicitude da conduta, o questionamento do bom ou mau funcionamento da Administração. Demonstrado o nexo de causalidade, o Estado deve ressarcir.” (grifei)

É certo, no entanto, que o princípio da responsabilidade objetiva não se reveste de caráter absoluto, eis que admite abrandamento e, até mesmo, exclusão da própria responsabilidade civil do Estado nas hipóteses excepcionais configuradoras de situações liberatórias - como o caso fortuito e a força maior - ou evidenciadoras de ocorrência de culpa atribuível à própria vítima (RDA 137/233 - RTJ 55/50 - RTJ 163/1107-1109, v.g.).

Impõe-se destacar, neste ponto, na linha da jurisprudência prevalecente no Supremo Tribunal Federal (RTJ 163/1107-1109, Rel. Min. CELSO DE MELLO - AI 299.125/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), que os elementos que compõem a estrutura e delineiam o perfil da responsabilidade civil objetiva do Poder Público compreendem (a) a alteridade do dano, (b) a causalidade material entre o “eventus damni” e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente público, (c) a oficialidade da atividade causal e lesiva imputável a agente do Poder Público, que, nessa condição funcional, tenha incidido em conduta comissiva ou omissiva, independentemente da licitude, ou não, do seu comportamento funcional (RTJ 140/636) e (d) a ausência de causa excludente da responsabilidade estatal (RTJ 55/503 - RTJ 71/99 - RTJ 91/377 - RTJ 99/1155 - RTJ 131/417).

A compreensão desse tema e o entendimento que resulta da exegese dada ao art. 37, § 6º, da Constituição foram bem definidos e expostos pelo Supremo Tribunal Federal em julgamentos cujos acórdãos estão assim ementados:

“RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO PODER PÚBLICO - PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL.

- A teoria do risco administrativo, consagrada em sucessivos documentos constitucionais brasileiros desde a Carta Política de 1946, confere fundamento doutrinário à responsabilidade civil objetiva do Poder Público pelos danos a que os agentes públicos houverem dado causa, por ação ou por omissão. Essa concepção teórica, que informa o princípio constitucional da responsabilidade civil objetiva do Poder Público, faz emergir, da mera ocorrência de ato lesivo causado à vítima pelo Estado, o dever de indenizá-la pelo dano pessoal e/ou patrimonial sofrido, independentemente de caracterização de culpa dos agentes estatais ou de demonstração de falta do serviço público.

- Os elementos que compõem a estrutura e delineiam o perfil da responsabilidade civil objetiva do Poder Público compreendem (a) a alteridade do dano, (b) a causalidade material entre o eventus damni e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente público, (c) a oficialidade da atividade causal e lesiva, imputável a agente do Poder Público, que tenha, nessa condição funcional, incidido em conduta comissiva ou omissiva, independentemente da licitude, ou não, do comportamento funcional (RTJ 140/636) e (d) a ausência de causa excludente da responsabilidade estatal (RTJ 55/503 - RTJ 71/99 - RTJ 91/377 - RTJ 99/1155 - RTJ 131/417).

- O princípio da responsabilidade objetiva não se reveste de caráter absoluto, eis que admite o abrandamento e, até mesmo, a exclusão da própria responsabilidade civil do Estado, nas hipóteses excepcionais configuradoras de situações liberatórias - como o caso fortuito e a força maior - ou evidenciadoras de ocorrência de culpa atribuível à própria vítima (RDA 137/233 - RTJ 55/50). (...).”

(RTJ 163/1107-1108, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

“- Recurso extraordinário. Responsabilidade civil do Estado. Morte de preso no interior do estabelecimento prisional. 2. Acórdão que proveu parcialmente a apelação e condenou o Estado do Rio de Janeiro ao pagamento de indenização correspondente às despesas de funeral comprovadas. 3. Pretensão de procedência da demanda indenizatória. 4. O consagrado princípio da responsabilidade objetiva do Estado resulta da causalidade do ato comissivo ou omissivo e não só da culpa do agente. Omissão por parte dos agentes públicos na tomada de medidas que seriam exigíveis a fim de ser evitado o homicídio. 5. Recurso conhecido e provido para condenar o Estado do Rio de Janeiro a pagar pensão mensal à mãe da vítima, a ser fixada em execução de sentença.”

(RTJ 182/1107, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA - grifei)

É por isso que a ausência de qualquer dos pressupostos legitimadores da incidência da regra inscrita no art. 37, § 6º, da Carta Política basta para descaracterizar a responsabilidade civil objetiva do Estado, especialmente quando ocorre circunstância que rompe o nexo de causalidade material entre o comportamento do agente público (positivo ou negativo) e a consumação do dano pessoal ou patrimonial infligido ao ofendido.

As circunstâncias do presente caso, no entanto, apoiadas em pressupostos fáticos soberanamente reconhecidos pelo Tribunal “a quo”, evidenciam que se reconheceu presente, na espécie, o nexo de causalidade material, ao contrário do que sustentado pelo Estado de São Paulo, que pretendeu tê-lo por inexistente.

Daí a correta observação feita pelo E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, constante do acórdão ora recorrido (fls. 261):

“No caso dos autos, comprovada a prisão provisória do embargado, seguida da segregação preventiva e do arquivamento do inquérito policial, inafastável a conclusão de que houve falha da Administração na execução da diligências policiais, donde emerge a responsabilidade objetiva do Estado (...).” (grifei)

Inquestionável, desse modo, que a existência do nexo causal - cujo reconhecimento, pelo Tribunal ora recorrido, efetivou-se em sede recursal meramente ordinária - teve por suporte análise do conjunto probatório subjacente ao pronunciamento jurisdicional em referência.

Esse dado assume relevo processual, pois a discussão ora suscitada pelo Estado de São Paulo em torno da pretendida inexistência, na espécie, do nexo de causalidade material revela-se incabível em sede de recurso extraordinário, por depender do exame de matéria de fato, de todo inadmissível na via do apelo extremo.

Como se sabe, o recurso extraordinário não permite que se reexaminem, nele, em face de seu estrito âmbito temático, questões de fato ou aspectos de índole probatória (RTJ 161/992 - RTJ 186/703). É que o pronunciamento do Tribunal “a quo” sobre matéria de fato (como o reconhecimento da existência do nexo de causalidade material, p. ex.) reveste-se de inteira soberania (RTJ 152/612 - RTJ 153/1019 - RTJ 158/693, v.g.).

Impende enfatizar, neste ponto, que esse entendimento (inadmissibilidade do exame, em sede recursal extraordinária, da pretendida inexistência do nexo de causalidade) tem pleno suporte no magistério jurisprudencial desta Suprema Corte (AI 505.473-AgR/RJ, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA - RE 234.093-AgR/RJ, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - RE 257.090-AgR/RJ, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA - AI 299.125/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.):

“AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. RESPONSABILIDADE DO ESTADO. NEXO DE CAUSALIDADE. REEXAME DE FATOS E PROVAS. SÚMULA 279-STF.

Responsabilidade objetiva do Estado por morte de preso em complexo penitenciário. Alegações de culpa exclusiva da vítima e de ausência de nexo de causalidade entre a ação ou omissão de agentes públicos e o resultado. Questões insuscetíveis de serem apreciadas em recurso extraordinário, por exigirem reexame de fatos e provas (Súmula 279-STF). Precedentes.

Agravo regimental a que se nega provimento.”

(AI 343.129-AgR/RS, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA - grifei)

“1. RECURSO. Extraordinário. Inadmissibilidade. Reexame de fatos e provas. Responsabilidade do Estado. Tiroteio entre policiais e bandidos. Morte de transeunte. Nexo de causalidade. Reexame. Impossibilidade. Ofensa indireta à Constituição. Agravo regimental não provido. Inadmissível, em recurso extraordinário, o reexame dos fatos e provas em que se baseou o acórdão recorrido para reconhecer a responsabilidade do Estado por danos que seus agentes causaram a terceiro. (...).”

(RE 286.444-AgR/RJ, Rel. Min. CEZAR PELUSO - grifei)

“RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO (CF, ART. 37, § 6º). POLICIAL MILITAR, QUE, EM SEU PERÍODO DE FOLGA E EM TRAJES CIVIS, EFETUA DISPARO COM ARMA DE FOGO PERTENCENTE À SUA CORPORAÇÃO, CAUSANDO A MORTE DE PESSOA INOCENTE. RECONHECIMENTO, NA ESPÉCIE, DE QUE O USO E O PORTE DE ARMA DE FOGO PERTENCENTE À POLÍCIA MILITAR ERAM VEDADOS AOS SEUS INTEGRANTES NOS PERÍODOS DE FOLGA. CONFIGURAÇÃO, MESMO ASSIM, DA RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO PODER PÚBLICO. PRECEDENTE (RTJ 170/631). PRETENSÃO DO ESTADO DE QUE SE ACHA AUSENTE, NA ESPÉCIE, O NEXO DE CAUSALIDADE MATERIAL, NÃO OBSTANTE RECONHECIDO PELO TRIBUNAL ‘A QUO’, COM APOIO NA APRECIAÇÃO SOBERANA DO CONJUNTO PROBATÓRIO. INADMISSIBILIDADE DE REEXAME DE PROVAS E FATOS EM SEDE RECURSAL EXTRAORDINÁRIA. PRECEDENTES ESPECÍFICOS EM TEMA DE RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO. ACÓRDÃO RECORRIDO QUE SE AJUSTA À JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE CONHECIDO E IMPROVIDO.”

(RE 291.035/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Cumpre ressaltar, por tal razão, em face do caráter soberano do acórdão recorrido (que reconheceu, com apoio no exame de fatos e provas, a ausência de demonstração da ruptura do nexo causal sustentada pelo Estado de São Paulo), que o Tribunal de Justiça interpretou, com absoluta fidelidade, a norma constitucional que consagra, em nosso sistema jurídico, a responsabilidade civil objetiva do Poder Público.

Com efeito, o acórdão impugnado na presente sede recursal extraordinária, ao fazer aplicação do preceito constitucional em referência (CF, art. 37, § 6º), reconheceu, com inteiro acerto, no caso em exame, a cumulativa ocorrência dos requisitos concernentes (1) à consumação do dano, (2) à conduta dos agentes estatais, (3) ao vínculo causal entre o evento danoso e o comportamento dos agentes públicos e (4) à ausência de qualquer causa excludente de que pudesse eventualmente decorrer a exoneração da responsabilidade civil do Estado de São Paulo.

Cabe acentuar, por necessário, que esse entendimento vem sendo observado em sucessivos julgamentos, proferidos no âmbito desta Corte, a propósito de questão virtualmente idêntica à que ora se examina nesta sede recursal (AI 654.562-AgR/GO, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - RE 505.393/PE, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - RE 557.922/MG, Rel. Min. ELLEN GRACIE - RE 594.500/SP, Rel. Min. EROS GRAU, v.g.).

Conclui-se, portanto, que a pretensão recursal deduzida pelo Estado de São Paulo não tem o amparo da própria jurisprudência que o Supremo Tribunal Federal firmou em precedentes inteiramente aplicáveis ao caso ora em exame.

Sendo assim, e pelas razões expostas, conheço do presente recurso extraordinário, para negar-lhe provimento.

Publique-se.

Brasília, 05 de outubro de 2009.

(21º Aniversário da promulgação da Constituição democrática de 1988)

Ministro CELSO DE MELLO

Relator

* decisão publicada no DJE de 16.10.2009

Revista Jus Vigilantibus, Sabado, 12 de dezembro de 2009

sábado, 9 de outubro de 2010

COISAS DA VIDA NORMAL

COISAS DA VIDA NORMAL*
Autor: Léo Rosa de Andrade;



LÉO ROSA DE ANDRADE
Doutor em Direito pela UFSC. Psicólogo e Jornalista. Professor da Unisul.
Site: www.leorosa.com.br





A relação entre duas pessoas, o dia a dia de um casal forma cumplicidades, cria segredos, mostra por dentro, suprime inibições. Depois de algum tempo, segundo me contam, na vida íntima de um par quase tudo está exposto por um diante do outro. Não se trata de perder a vergonha. Parece que a vergonha acaba ficando sem sentido. Ora, vergonha é escrúpulo e falta de confiança em si, o que leva à repressão de grandes e pequenas vontades. O cotidiano vai dando jeito nessas coisas.





De fato, o cotidiano vai criando uma moralidade doméstica, com códigos compreensíveis pelo casal, e essa moralidade doméstica dilui a moralidade individual das partes que gozam de intimidade. As partes se sabem, com o que isso tem de bom e de mau. Já ouvi que entre a porta da sala e a da cozinha há mais segredos do que entre o céu e a terra. Esses segredos, claro, são para os de fora, que dentro de casa basta prestar atenção aos detalhes que uma parte saberá o que quiser e o que não quiser saber da outra. Os delicados jeitinhos ou as bardas de cada qual falam por si.





Cada parte está exposta à outra por muitas vezes, por muito tempo. A moral individual aberta é exposição plena. E mais do que a moral, de tanto se expor, expõe-se, também, a compostura dos modos. A correção de maneiras vai recebendo licenças, e não demora muito se vai abandonando a barriga, a depilação, a tampa do bacio, os gazes, o palavreado. Fica-se, e o que é pior, com licença de ficar, relaxado. O exibir o melhor de si transforma-se em desapreço esculachado. E não é menosprezo por alguma desafeição; é por quedar-se desatento, por esquecer-se de cuidar e de cuidar-se. É só descuido.





Não sou muito de conselhos, mas recomendei a uma menina amiga minha: vai viver com alguém? Mantenha o nível. Se gerar uma expectativa alta, trate de manter o estado de coexistência elevado. A vulgarização do comportamento no contubérnio devasta a sensação do belo, do clima amoroso, da graça de conviver. É a estética do desapaixonado, inclusive por si próprio. Se o olhar-se no espelho já não acorda Narciso, não acorda mais nada. Ninguém se interessa pelo olhar do outro se não se interessa, antes, por olhar-se a si. Quero que o outro aprecie o que eu aprecio em mim.





Um conhecido contou-me um causo sobre intimidade e apreciação: o casal já não se curtia. Ele não fazia mais a barba do rosto que ela gostava de alisar; ela não fazia os pelos da perna que ele gostava de afagar. Ninguém mais passeava a mão pelo corpo de mais ninguém. A coisa ia de ruim para pior. Perdurava o silêncio, a televisão ainda salvava a situação. O problema agravou-se exatamente por causa disso, a televisão. O filme tinha rapazes bonitos e cenas carinhosas. Havia sexo. Ela, por qualquer razão, tomou-se de vontade de namorar.





A transa ia boa, mas, aí, o rosto dela: olhos fechados e um sorriso gostoso que há tempos não era assim. Não parou enquanto pensava, mas não dava para não pensar: não era com ele. Ela não estava com ele. Ele conhecia bem, sabia que aquele jeito entregue, sem pressa, era qualquer coisa que não era transar com ele. Para, não para, falou: abra os olhos. Ela nem se mexeu; ou não ouviu, ou não entendeu, ou não quis entender. Repetiu. Ela olhou, mas não desmanchou o sorriso. Ele foi macho: ou é comigo, ou não é com ninguém. Fica de olho aberto, tem que me ver. Ela ficou, mas pensou em quem quis, olhando para o teto. Dizem que, um com o outro, foi a última vez.

domingo, 3 de outubro de 2010

Gilmar Mendes será denunciado na ONU por telefonema de Serra

Gilmar Mendes será denunciado na ONU por telefonema de Serra

Para as entidades que subscrevem a denúncia, o caso apresenta indícios claros de interferência política nas decisões do Supremo. "Um juiz da mais alta Corte do País não pode receber telefonemas de uma das partes interessadas no meio do julgamento. Pediremos que as Nações Unidas avaliem o caso e cobrem providências do governo brasileiro, para que se faça uma investigação criteriosa dos fatos, inclusive com a quebra judicial do sigilo telefônico se for o caso", afirma a advogada Andressa Caldas, diretora da Justiça Global.

Rodrigo Martins - CartaCapital

Da revista Carta Capital

O suposto telefonema do presidenciável José Serra (PSDB) ao ministro Gilmar Mendes, durante uma audiência no Supremo Tribunal Federal (STF), levou a ONG Justiça Global e uma série de outras organizações de direitos humanos a encaminhar uma denúncia para as Nações Unidas, devido às suspeitas de falta de independência do magistrado. A ligação telefônica, segundo reportagem da Folha de S.Paulo, teria ocorrido na quarta-feira 29, durante o julgamento de recurso do PT contra a obrigatoriedade de o eleitor portar dois documentos no dia da votação.

O recurso já havia sido acolhido por sete dos atuais dez ministros da Corte (Eros Grau se aposentou e ainda não foi substituído) quando Mendes decidiu pedir vistas do processo. No dia seguinte, votou contra a requisição petista. De toda maneira, a votação terminou em oito votos favoráveis e dois contra. E, agora, o eleitor pode se apresentar no pleito com qualquer documento de identificação oficial com foto. Vitória do PT, que temia que os eleitores de baixa renda e escolaridade deixassem de votar em função da exigência de dois documentos.

Para as entidades que subscrevem a denúncia, o caso apresenta indícios claros de interferência política nas decisões do Supremo. "Um juiz da mais alta Corte do País não pode receber telefonemas de uma das partes interessadas no meio do julgamento. Pediremos que as Nações Unidas avaliem o caso e cobrem providências do governo brasileiro, para que se faça uma investigação criteriosa dos fatos, inclusive com a quebra judicial do sigilo telefônico se for o caso", afirma a advogada Andressa Caldas, diretora da Justiça Global.

De acordo com ela, o documento deverá ser encaminhado na tarde desta sexta-feira à brasileira Gabriela Carina de Albuquerque da Silva, relatora especial da ONU sobre a independência de juízes e advogados, e ao Alto Comissariado das Nações Unidas. "Normalmente, encaminhamos esse tipo de denúncia apenas à relatoria da ONU, mas como a titular do cargo é brasileira talvez ela se sinta impedida de avaliar o caso". Razões para isso não faltam, afinal Gabriela foi assessora de Mendes na época em que ele era presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Andressa ressalta ainda que o ministro Gilmar Mendes, ex-advogado geral da União no governo Fernando Henrique Cardoso, foi acusado outras vezes de atuar de forma parcial no Supremo. "Em diversos casos, o magistrado se pronunciou antes de avaliar os autos do processo e emitiu opiniões contestáveis, por exemplo, ao criminalizar a atuação de movimentos sociais, como o MST", afirma a advogada. "É por isso que está tomando corpo um movimento pelo impeachment de Mendes. Não temos posição firmada a esse respeito, mas consideramos que esse caso do suposto telefonema de Serra ao ministro, durante o julgamento de um recurso apresentado pelo partido de sua principal oponente nas eleições, deve ser criteriosamente investigado. E, caso se comprove a falta de autonomia, o magistrado precisa ser punido".

Entre as entidades que subscrevem a denúncia, estão a Rede Nacional de Advogados Populares (Renap), o instituto Ibase e a ONG Terra de Direitos. Além de reportar o caso do telefonema de Serra, o documento enumera outros deslizes do ministro e expõe sua estreita relação com políticos ligados ao PSDB.

Editorial Estadão

Editorial que retrata bem a realidade carcerária nacional.

Prisões superlotadas

No último levantamento estatístico do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), chama a atenção o crescimento vertiginoso da população carcerária. Nos últimos cinco anos, o número de presos cresceu 37%. Com um total de 494.598 pessoas encarceradas, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo. Só fica atrás dos Estados Unidos, que têm 2.297.400 presos, e da China, com 1.629.000.

Dos 494.598 presos no Brasil, 56% já foram condenados e estão cumprindo pena e 44% são presos provisórios, que aguardam o julgamento de seus processos. O crescimento da população carcerária mostra que as polícias civil e militar têm sido mais eficientes no combate à criminalidade, o que resulta no aumento do número de condenados pela Justiça. Esse é o lado positivo do levantamento do CNJ. O problema é que, apesar da construção de novos estabelecimentos penais pela União e pelos governos estaduais, o sistema prisional continua abarrotado e não tem como receber mais presos. Esse é o aspecto mais sombrio do quadro exibido pela pesquisa.

A taxa média de ocupação do sistema prisional é de 1,65 preso por vaga. Na América Latina, o Brasil só perde, nesse item, para a Bolívia, que tem uma taxa de 1,66. Ou seja, há mais gente presa do que o número de vagas nas penitenciárias e cadeiões. Por isso, 57.195 pessoas estão cumprindo pena em delegacias, cujas carceragens não contam com infraestrutura adequada. Uma das metas estabelecidas pelo CNJ para as Justiças estaduais e federal, em 2010, é reduzir a zero o número de presos em delegacias. O levantamento estatístico mostra que a meta não será cumprida.

Segundo as estimativas do Departamento Penitenciário do Ministério da Justiça, o déficit no sistema prisional hoje é superior a 170 mil vagas. Além disso, há cerca de 500 mil mandados de prisão expedidos pela Justiça, mas não cumpridos. A falta de vagas e a superlotação dos estabelecimentos penais, decorrente do significativo aumento do número de pessoas condenadas pela Justiça, estão entre os principais fatores responsáveis pelo alto índice de reincidência criminal no País. Em alguns Estados, segundo estudos do Conselho Nacional de Política Criminal, 70% dos presos que deixam a prisão voltam a delinquir - na Europa e nos Estados Unidos a taxa média de reincidência é de 16%.

A crise do sistema prisional foi agravada nos últimos anos pelas mudanças ocorridas no perfil da criminalidade. Segundo o levantamento do CNJ, entre 2000 e 2010, o número de presos envolvidos com tráfico de drogas pulou de 9% para 22% da população carcerária (entre as mulheres, o aumento foi de 60%). Isso ocorreu porque, em decorrência da expansão do narcotráfico, em 2006 o Congresso aumentou o rigor da legislação penal, elevando a pena mínima de três para cinco anos de reclusão para os traficantes e limitando a concessão de liberdade provisória.

A conjugação de sanções mais severas e menos benefícios agravou o problema da superlotação do sistema prisional. Ele é tão grave que o Brasil responde a várias denúncias nos órgãos que compõem o Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos. As penitenciárias de Rondônia, que estão entre as mais abarrotadas do País e onde têm ocorrido sangrentas rebeliões, já foram denunciadas à Comissão de Direitos Humanos da OEA. Também há processos abertos contra o Estado brasileiro por causa de maus-tratos de presos em prisões do Espírito Santo, que tramitam na Corte Interamericana de Direitos Humanos, em San José, na Costa Rica.

Para desafogar as prisões, funcionários do Executivo vêm estimulando os juízes criminais a reduzir o número de prisões provisórias, a aplicar penas alternativas e a permitir o monitoramento de presos de baixa periculosidade por meio de tornozeleiras eletrônicas. Mas, como lembra Luciano Losekann, do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do CNJ, para que essas medidas sejam eficazes é preciso uma política penitenciária articulada que envolva a União, os Estados e o Judiciário.


domingo, 26 de setembro de 2010

Sentença oral no processo penal?

Sentença oral no processo penal?

Segue link supra, em que o Juiz Rosivaldo Toscano exara brilhante sentença oralmente;
colacionado de seu blog.
Abraço e boa semana.

Com amor, recomeçar*

Bonito texto retirado do portal LFG.

Com amor, recomeçar*
Autor: Léo Rosa de Andrade;



LÉO ROSA DE ANDRADE
Doutor em Direito pela UFSC. Psicólogo e Jornalista. Professor da Unisul.
Site: www.leorosa.com.br





O homem está diante da mulher que dorme. Tomado de encanto, o homem olha a mulher que dorme. Arrebatado por um afeto meigo, põe-se em posição confortável e observa. Há bom tempo está ali, parecia absorto, estava extasiado a observar. Não há paixão, não há desejo, há uma ternura delicada. Um ímpeto lhe dirige a mão, levando-a ao rosto tão bonito, descansado pelo sono. Contém o gesto. Tocá-la é quebrar o encanto, o carinho é não tocá-la. O carinho é só olhar.





A mulher acorda. A mulher levemente acorda. Seu olhar diz nada, mas sorri como criança acariciada. O homem a admira, a mulher se sente admirada. Os olhos se vão acendendo, senta-se na cama, põe-se, também, a olhar. Pergunta um delicado “que é, não consegues dormir?” “Conseguiria, estou cansado”, disse o homem, “mas não quero, quero te contemplar”. “Que lindo”, disse a mulher, “é tão gostoso acordar assim, com a meiguice ao lado”.





O homem não fala, fica no silencioso tomar conta do que pensava de si e da mulher. Em paz por todo o corpo, para não quebrar a paz, não quer falar. Não fala. A mulher entende. A mulher parece entender, mas está a imaginar o que se passa. Procura compreender o que vai por dentro do homem tão quieto. Não compreende, e se inquieta: “que pensas, pareces tão longe, noutro lugar”. O homem volta, e diz como se dissesse para si mesmo: “eu não sei onde estava, mas talvez vá para lá”.





Tarde da noite, outra vez o silêncio do homem, outra vez quer saber a mulher. Mas seria de perguntar? Melhor não, algo de estranho se esboçava no ar. Podia ser nada, mas se via que havia já uma distância até na fala, ou no jeito de falar. “Eu te amo muito, nunca amei ninguém tanto assim. Tu és a melhor amiga, a única pessoa amiga, uma pessoa certa com quem sei que sempre posso contar”, disse o homem. A mulher entendia que devia entender alguma coisa. Não entendeu, mas nada de perguntar.





“Nós somos bons amigos. Nunca tive tanto apego, nunca quis tanto alguém. Eu vou embora”, disse o homem. Não havia como ainda se calar. “Amor, amigo, embora?”, balbuciou a mulher. “Amor”, disse o homem, “um amor que me enche o coração, onde mora a minha amiga, a amiga que me toca tanto. Tu precisas, minha amiga, que eu me vá. Eu preciso ir. O amor que sentes, o amor que sinto, não é o de ficar. Faltam as vontades do começo, falta a paixão. O que nós temos é outro amor. Nos admiramos, nos entendemos, nos temos tanta gratidão”.





Abatimento, lágrima, compreensão. Alívio e medo. Um longo silêncio, um olhar distante da mulher. “Eu sei, também sinto falta do início. Mas tenho medo de me desgarrar das coisas da nossa vida, de te não ter e de não me encontrar. É o fascínio do chamado a ir; é temor da incerteza a querer ficar. Mas eu sei meu amigo doce, companheiro de jornada, tão querido amigo de conversar. Eu sei, esse nosso amor amigo é um amor de fim e um amor de recomeçar”. Silêncio, e nem cabia qualquer palavra. Se faltou dizer algo, foi dito com um sorriso ou com um olhar.
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sexta-feira, 10 de setembro de 2010

O juiz e a emoção: aspectos da lógica da decisão judicial

Excerto da obra de Lídia Reis de Almeida Prado(destacada no título do post), Procuradora e Psicóloga, acerca da influência do psiquismo do Juiz ao decidir.

"No Brasil contemporâneo, não encontramos uma bibliografia extensa sobre a importância dos aspectos psicológicos do juiz na atividade jurisdicional, mas o tema vem sendo abordado qualitativamente de um modo significativo. Assim, o próprio MIGUEL REALE, embora critique o psicologismo jurídico, devido ao seu reducionismo, entende não se limitar a sentença a um simples juízo lógico, enfatizando o que chama de humanidade do juiz na justiça. O autor pondera que, queiram-no ou não os partidários de uma objetividade isenta por parte do magistrado, ela é um juízo valorativo, em que é importante a presença do juiz como ser humano. Lembrar-se dessa contingência talvez seja o primeiro dever do magistrado em sua real e legítima aspiração de atingir o equitativo e justo.¹²
Acrescenta REALE que o juiz não pode deixar de ser partícipe da vida comum. No ato de sentenciar, quer queira quer não, ele sofre uma tensão ético-psicológica que vem de seu íntimo, do que ele sente e sabe por experiência própria e de seus valores sociais que incidem sobre sua personalidade. A seguir, lembra ADAM SMITH, um dos fundadores da Ciência Econômica, para quem o ato de julgar é muito difícil, porque pressupõe a capacidade de colocar-se no lugar do outro. O juiz deve ser imparcial, mas o acerto de sua decisão depende, segundo REALE, dessa capacidade psicológica. Por isso, conclui¹³ que o segredo da justiça está no fato de o juiz saber que a neutralidade não significa fugir das pessoas em litígio, mas se colocar na posição deles.
Por sua vez o juiz REANTO NALINI, Conselheiro da Escola Paulista de Magistratura, ao refletir sobre a influência do sentimento na vida humana apesar de sua repressão na cultura, enfatiza:

habitantes de um século gelado. em que saber e paixão são estocados em gavetas distintas da alma, preferimos a distância protetora ao envolvimento. Acreditamos, mais que nunca, que a paixão cega. Não podemos mais tomá-la pelo que de fato é: uma fonte de iluminação. 14

Entende NALINI, que realiza um diligente trabalho no aperfeiçoamento da formação dos juízes, serem requisitos do bom julgador higidez psíquica e o interesse pela natureza humana. 15
Ao discorrer sobre o magistrado e a comunidade, 16 o autor afirma que o juiz moderno deve ter, como pressuposto básico para o exercício da função, uma especial percepção do homem e da realidade, sendo necessário que, na preparação dos julgadores, as Escolas considerem o temperamento, a experiência de vida e o caráter.
Pondera NALINI que o juiz deve proferir a sentença com sentimento e não se reduzir a um mero burocrata repetidor de decisões alheias, com a finalidade de aderir à maioria. Ele acresenta que, embora não haja no Brasil estudos científicos sobre o perfil psicológico do magistrado, a origem social, as contingências familiares, a situação, raça, crença religiosa, refletirão na decisão a ser proferida, ao lado das influências psicológicas (traços da personalidade e preconceitos).17
Como a função de dirimir é muito desgastante, NALINI sugere a implantação de um serviço de acompanhamento psicológico ao juiz. Tal providência seria muito útil para a Justiça, pois permitiria ao julgador entrar em contato com os próprios preconceitos e vulnerabilidades, percebendo-se um ser sensível. Muitos problemas resultantes de disponibilidades dos magistrados seriam evitados se os juízes tivessem recebido orientação psiquiátrica, terapia psicanalítica ou um acompanhamento profissional.18
O autor conclui que a exigência legal de uma conduta privada irrepreensível torna o magistrado muito crítico em relação a pessoas com comportamentos flexíveis. Apegado à dogmática do direito objetivo, convence-se das verdades axiomáticas e protege-se na couraça da ordem e da pretensa neutralidade. A percela de poder a ele confiada e a possibilidade de decidir sobre o destino alheio, tornam-no prepotente: é reverenciado pelos advogados e servidores, temido pelas partes, distante de todos. Considerando-se predestinado e dono do futuro das partes no processo, revela-se desumano, mero técnico eficiente e pouco humilde, 'esquecido da matéria-prima das demandas: as dores, sofrimentos e tragédias humanas'."19 (PRADO, Lídia Reis de Almeida. O juiz e a emoção: aspectos da lógica da decisão judicial, 5ª ed. Campinas/SP: Millennium Editora, 2010. pp. 22/4)

domingo, 5 de setembro de 2010

STF e Lei 11.343/06

Editorial do Estadão comentando decisão do STF que concedeu a substituição de pena privativa de liberdade por restritiva de direitos a acusado condenado por tráfico de drogas.
No entender do Pretório Excelso, a vedação de substituição da pena de privação de liberdade para acusados de tráfico de drogas, previsto na Lei 11.343, contraria o princípio constitucional da individualização e humanidade das penas.

Para o Min. Ayres Brito "O princípio da individualização significa o reconhecimento de que cada ser humano é um microcosmo".

Lúcida decisão, tendo em vista que, segundo o próprio editorial informa, a grande maioria dos condenados por tráfico de drogas sob o crivo estatal são 'pequenos traficantes', fazendo com que, com a filtragem constitucional, o artigo 44 da Lei de drogas padeça de inconstitucionalidade.

Abraço,
Rafael S. de Faria.



Decisões contraditórias
05 de setembro de 2010 | 0h 00

Estado de S.Paulo

No mesmo dia em que a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou um projeto que aumenta o rigor da punição dos autores de crimes hediondos, dentre os quais se insere o tráfico de drogas, o Supremo Tribunal Federal (STF) agiu de forma diametralmente oposta. Por 6 votos contra 4, a Corte concedeu a traficantes o direito a penas alternativas, que são muito mais brandas do que as de prisão cumpridas em penitenciária de segurança máxima, como determina a Lei de Drogas.


Essas decisões mostram que o Brasil não tem uma política uniforme e coerente de combate a esse tipo de crime. A Lei de Drogas foi aprovada em 2006 para deter o avanço do crime organizado, criar um sistema nacional de combate ao narcotráfico e formular políticas públicas para a reinserção social dos dependentes de entorpecentes. Na época, ela recebeu elogios de criminalistas, sociólogos e terapeutas.

No entanto, ao julgar um pedido de habeas corpus de um traficante gaúcho, condenado a dois anos de prisão por portar 14 gramas de cocaína que pretendia vender a viciados, o STF considerou inconstitucional o dispositivo da Lei de Drogas que proíbe a aplicação de penas alternativas a quem for condenado por crime hediondo, como é o caso do tráfico. A lei impõe a pena de prisão a todos os traficantes, grandes e pequenos.

A corrente vencedora justificou a decisão com base nos princípios da "individualização" e "humanização da pena", que permitem aos juízes criminais levar em conta as especificidades de cada caso e as peculiares de cada réu. "O princípio da individualização significa o reconhecimento de que cada ser humano é um microcosmo", disse o vice-presidente do STF, Ayres Britto. Alguns ministros também afirmaram que, ao ampliar o rigor das punições a traficantes e proibir a concessão de penas alternativas, o Congresso teria exorbitado de sua função legislativa. Segundo eles, os parlamentares tentaram "substituir-se ao próprio magistrado no desempenho da atividade jurisdicional". Os congressistas não poderiam substituir os juízes na apreciação de cada caso, disse o ministro Celso de Mello.

A corrente derrotada alegou que o Supremo não poderia mudar o tratamento punitivo previsto por lei especialmente aprovada pelo Legislativo com o objetivo de reduzir a escalada do crime. Os defensores dessa tese advertiram para o risco de se colocar os pequenos traficantes em creches, escolas, hospitais e repartições públicas para prestar serviços comunitários. A seu ver, esse tratamento aos pequenos traficantes estimulará o crime organizado a explorá-los ainda mais.

Um estudo feito com base em estatísticas do IBGE e em dados extraídos do perfil socioeconômico da população carcerária dá uma ideia do alcance da decisão do Supremo. A pesquisa, que chegou a ser citada expressamente por alguns ministros durante o julgamento, revela que, das 69.049 pessoas que foram condenadas por tráfico em 2008, 80% eram pequenos traficantes. Isso significa que, a partir da publicação da decisão do STF, cerca de 55 mil traficantes poderão pleitear a substituição da pena privativa de liberdade por penas alternativas.

No Senado, a Comissão de Constituição e Justiça adota uma posição oposta à do Supremo. Lembrando que a função do Legislativo é fazer leis e a da Justiça é aplicá-las, os senadores querem restringir ainda mais os benefícios que os juízes podem conceder a quem cumpre pena por crime hediondo. "Sou completamente a favor da proposta. Ela faz um bem enorme à sociedade e dá mais poder de controle ao Estado, uma vez que os crimes hediondos são crimes graves", diz o relator do projeto, senador Demóstenes Torres, que é promotor de Justiça.

Nos órgãos policiais e no Ministério Público, a decisão do STF foi mal recebida e a da CCJ do Senado, elogiada. A reação dos juízes, como era previsível, foi diferente. Assim, enquanto um Poder vota medidas para proteger a sociedade contra a escalada do crime e outro trata os criminosos de modo mais brando, a pretexto de "humanizar" as penas, o País retrocede em matéria de segurança pública.




sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Adoniran Barbosa

Tendo em vista a recente postagem desse antológico vídeo de Elis com Adoniran, colaciono texto de Marcelo Semer sobre Adoniran Barbosa.


quarta-feira, 11 de agosto de 2010
....cem anos de Adoniran, o Carlitos do samba....

Adoniran Barbosa introduziu o excluído como personagem principal da cidade, o caipira urbano. Cantou os deserdados do progresso, os que sofreram com o crescimento sem tomar carona nele. Foi a mais completa tradução de Sampa.








Seria difícil não se comover com as histórias de uma mulher que morre atropelada vinte dias antes de seu casamento, de uma família despejada em reintegração de posse sem lugar para viver ou do morador de favela que vê seu barraco inteiro tragado por um enorme temporal.

Mas quando elas nos são contadas, e em especial cantadas, por Adoniran Barbosa, a agonia e a graça se misturam e nos fazem sorrir ao mesmo tempo em que nos tornam próximos das tragédias e mazelas de São Paulo, que ele conheceu e compôs como ninguém.

O tragicômico é assinalado com uma simplicidade nada menos que genial.

Em uma espécie de resignação sempre resistente, Adoniran reintroduziu o excluído como personagem principal da cidade. É ao redor dele, que ela ganha vida.

Adoniran cunhou seu Carlitos no samba - o adorável vagabundo, que nos faz rir com seu empenho e seu fracasso, sua fragilidade para enfrentar as violências, injustiças e intempéries da grande cidade. Ora boêmio, ora trabalhador, mas sempre um pobre com dignidade e bom coração.

Como Chaplin, Adoniran também misturou, ele mesmo, artista e personagem. Terno, chapéu e a eterna gravata borboleta se combinavam com a deliciosa e inconfundível linguagem, meio italiana, meio inculta, que dizia encontrar pelas ruas do Bexiga.

Como o matuto Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, Adoniran recriou o caipira na cidade grande.

Neste agosto, a contar-se pelos registros legais, Adoniran estaria fazendo cem anos. Mas ele está é fazendo falta. Um pouco da São Paulo antiga se foi com ele. A luz do lampião que não mais nos 'alumeia'.

Adoniran foi poeta grande da gente pobre. Seu habitat eram malocas e favelas, moradas de baixo custo e de quase nenhuma proteção.

Seus personagens serventes, engraxates, camelôs, jardineiros ou operários foram os portadores da poética do humilde, na qual um apaixonado faz aliança para a noiva com a corda do cavaquinho, o abraço é mais apertado, por que não usa "as bleques tais" e a solidariedade infinita, a ponto de quem está na desgraça enxergar um necessitado em situação ainda pior a quem deve ajudar.

É um samba da tristeza, mas, sobretudo, da saudade.

De quem viveu, mesmo na maloca, os melhores dias das suas vidas. Ainda assim, é um samba que nos delicia e faz rir dos erros, dos tropeços e gafes de seus Jocas, Matogrossos e de seus inúmeros Joãos.

Adoniran captou como poucos a sensação da exclusão, de quem foi sendo largado pelo caminho. A perda, a inadequação, o desconforto dos que sofreram com a industrialização e o crescimento, sem tomar carona nele.

O sentimento de estrangeiro em sua própria cidade, vítima desprotegida das transformações que os afastam ainda mais de seus modestos espaços.

Os barracos são derrubados para subirem os 'adifícios artos'.

A praça da Sé é modernizada e vira madame. Não tem mais o relógio para os namorados, o jornaleiro, o engraxate jogando cacheta o dia inteiro -ressabiado, ele recomenda: vai ver, mas não vai sozinho para não se perder.

A estação do trem do bairro que é 'pinchada' ao chão, para mais tarde fazer surgir o Metrô.

Tempos modernos. Adoniran cantou os deserdados da ordem e os excluídos do progresso.

A simplicidade, no entanto, escondeu um artista genial.

Um letrista incomparável que ultrapassou as regras da língua para atingir rimas inesquecíveis: a bala do revórver, as 'hora que vareia' e Pafunça, cujo desprezo comparou a de um 'alevador que num fununça'.

Como gostava de dizer, é preciso saber falar errado.

Adoniran fez do popular, clássico, mas ninguém desaprendeu com ele.

A truculência da censura viu uma péssima influência no português caricaturado de Samba do Arnesto. Ele apenas retrucou com sabedoria: vou esperar a burrice passar. Felizmente, ela passou.

Adoniran é dono de uma biografia quase nada autorizada.

Seu nome, conta-se, é uma apropriação de um colega de boemia e um sambista. João Rubinato ficou apenas nos documentos. Nestes, nem sua data de nascimento é confiável. Na vida, se confunde com o personagem que criou. Por isso, ninguém cantou Adoniran como Adoniran.

Também ninguém cantou São Paulo o tanto quanto ele.

Jaçanã, Bexiga, Casa Verde, Mooca e o Brás. Ermelindo Matarazzo, Vila Ré e uma nostálgica Vila Esperança. Esquadrinhou cada um dos lugares do centro velho: Praça da Sé, Viaduto Santa Efigênia, Praça da Bandeira, Praça Júlio de Mesquita, Rua dos Gusmões. E quando saiu de São Paulo, num dia de praia, só podia mesmo ter ido ao Guarujá.

O espaço se fez tão importante quanto a língua. Quase não há músicas sem referências a bairros, ruas e vilas desta cidade na qual se abrigou por inteiro. Como Woody Allen, em Nova York, a figura de Adoniran é indissociável de Sampa.

Foi a nossa mais completa tradução, apesar de ter nascido no interior.

Mas nenhum estudo, palavra, ensaio ou artigo, é mesmo capaz de reproduzir a mínima parte da emoção que se tem em ouvir suas músicas.

Afinal, como ele mesmo cantou, "quem gosta de discurso é orador, quem gosta de conversa é camelô".
Postado por Marcelo Semer às 18:42

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Eros Roberto Grau - Estadão on line

Entrevista com Eros Grau no Estadão on line. Para o Ex-ministro do STF, a Lei da Ficha Limpa é "deslavadamente inconstitucional".

'Lei da Ficha Limpa põe em risco o estado de direito'
Eros Roberto Grau. Ex-ministro do Supremo Tribunal Federal
03 de agosto de 2010 | 0h 00

- O Estado de S.Paulo

Eros Roberto Grau deixou ontem a cadeira de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) convencido de que a Lei da Ficha Limpa põe "em risco" o Estado de Direito. Ele acusa o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de ignorar o princípio da irretroatividade das leis. "Há muitas moralidades. Se cada um pretender afirmar a sua, é bom sairmos por aí, cada qual com seu porrete. Estou convencido de que a Lei Complementar 135 é francamente, deslavadamente inconstitucional."


O ministro sai do Supremo, após quase seis anos na mais alta instância da Justiça, onde chegou por indicação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em junho de 2004. Em entrevista ao Estado, Eros Grau critica também as transmissões dos julgamentos. "Isso só vai acabar no dia em que um maluco que se sentir prejudicado agredir ou der um tiro num ministro", afirmou.

O senhor deu várias demonstrações de cansaço no STF. O que o desanimou?

O fato de as sessões serem transmitidas atrapalha muito, porque algumas vezes o membro do tribunal se sente, por alguma razão, compelido a reafirmar pontos de vista. Existem processos que poderiam ser julgados com maior rapidez. Muitas vezes a coisa fica repetitiva e poderia ser mais objetiva.

O senhor é contra as transmissões?

Essa prática de televisionar as sessões é injustificável. O magistrado não deve se deixar tocar por qualquer tipo de apelo, seja do governo, seja da mídia, seja da opinião pública. Tem que se dar publicidade à decisão, não ao debate que pode ser envenenado de quando em quando. Acaba se transformando numa sessão de exibicionismo.

Existe a possibilidade de o tribunal deixar de exibir as sessões ao vivo?

Isso só vai acabar no dia em que um maluco que se sentir prejudicado agredir ou der um tiro num ministro. Isso pode acontecer em algum momento. Até que isso aconteça, haverá transmissão. Depois não haverá mais.

Em algum momento o senhor foi abordado na rua dessa forma?

Eu estava no aeroporto de Brasília com a minha mulher, depois do julgamento da lei de anistia, e veio uma maluca gritando, dizendo: "aí, está protegendo torturador". Foi a única vez que me senti acossado.

Para Eros Grau, o que é ficha limpa?

"Ficha limpa" é qualquer cidadão que não tenha sido condenado por sentença judicial transitada em julgado. A Constituição do Brasil diz isso, com todas as letras.

Políticos corruptos não são uma ameaça aos cofres públicos e ao estado de direito?

Sim, sem nenhuma dúvida. Políticos corruptos pervertem, são terrivelmente nocivos. Mas só podemos afirmar que este ou aquele político é corrupto após o trânsito em julgado, em relação a ele, de sentença penal condenatória. Sujeitá-los a qualquer pena antes disso, como está na Lei Complementar 135 (Ficha Limpa), é colocar em risco o estado de direito. É isto que me põe medo.

O que está em jogo não é a moralidade pública?

Sim, é a moralidade pública. Mas a moralidade pública é moralidade segundo os padrões e limites do estado de direito. Essa é uma conquista da humanidade. Julgar à margem da Constituição e da legalidade é inadmissível. Qual moralidade? A sua ou a minha? Há muitas moralidades. Se cada um pretender afirmar a sua, é bom sairmos por aí, cada qual com seu porrete. Vamos nos linchar uns aos outros. Para impedir isso existe o direito. Sem a segurança instalada pelo direito, será a desordem. A moralidade tem como um de seus pressupostos, no estado de direito, a presunção de não culpabilidade.

A profusão de liminares concedidas a candidatos, inclusive pelo Supremo, não confunde o eleitor?

Creio que não. Juízes independentes não temem tomar decisões impopulares. Não importa que a opinião publicada pela imprensa não as aprove, desde que elas sejam adequadas à Constituição. O juiz que decide segundo o gosto da mídia não honra seu ofício. De mais a mais, eleitor não é imbecil. Não se pode negar a ele o direito de escolher o candidato que deseja eleger.

Muitos partidos registraram centenas de candidaturas mesmo sabendo que elas poderiam ser enquadradas na Lei 135/2010, que barra políticos condenados por improbidade ou crime. Não lhe parece que os partidos estão claramente atropelando a Lei da Ficha Limpa, esperando as bênçãos do Judiciário?

Não, certamente. O Judiciário não existe para abençoar, mas para aplicar o direito e a Constituição. Muito pior do que corrupto seria um juiz, medroso, que abençoasse. Estou convencido de que a Lei Complementar 135 é francamente, deslavadamente inconstitucional.

Como aguardar pelo trânsito em julgado se na esmagadora maioria das ações ele é inatingível?

O trânsito em julgado não é inatingível. Pode ser demorado, mas as garantias e as liberdades públicas exigem que os ritos processuais sejam rigorosamente observados.

A Lei da Ficha Limpa é resultado de grande apelo popular ao qual o Congresso se curvou. O interesse público não é o mais importante?

Grandes apelos populares são impiedosos, podem conduzir a chacinas irreversíveis, linchamentos. O Poder Judiciário existe, nas democracias, para impedir esses excessos, especialmente se o Congresso os subscrever.

Não teme que a Justiça decepcione o País?

Não temo. Decepcionaria se negasse a Constituição. Temo, sim, estarmos na véspera de uma escalada contra a democracia. Hoje, o sacrifício do direito de ser eleito. Amanhã, o sacrifício do habeas corpus. A suposição de que o habeas corpus só existe para soltar culpados levará fatalmente, se o Judiciário nos faltar, ao estado de sítio.

O senhor teme realmente uma escalada contra a democracia?

Temo, seriamente, de verdade. O perecimento das democracias começa assim. Estamos correndo sérios riscos. A escalada contra ela castra primeiro os direitos políticos, em seguida as garantias de liberdade. Pode estar começando, entre nós, com essa lei. A seguir, por conta dessa ou daquela moralidade, virá a censura das canções, do teatro. Depois de amanhã, se o Judiciário não der um basta a essa insensatez, os livros estarão sendo queimados, pode crer.

Por que o Supremo Tribunal Federal nunca, ou raramente, condena gestores públicos acusados por improbidade ou peculato?

Porque entendeu, inúmeras vezes, que não havia fundamentos ou provas para condenar.

Que críticas o senhor faz à forma do Judiciário decidir?

As circunstâncias históricas ensejaram que o Judiciário assumisse uma importância cada vez maior. Isso pode conduzir a excessos. O juiz dizer que uma lei não é razoável! Ele só pode dizer isso se ele for deputado ou senador. Os ministros não podem atravessar a praça (dos Três Poderes, que separa o Supremo do Congresso). Eu disse muitas vezes isso lá: isso é subjetivismo. O direito moderno é a substituição da vontade do rei pela vontade da lei. Agora, o que se pretende é que o juiz do Supremo seja o rei. É voltar ao século 16, jogar fora as conquistas da democracia. Isso é um grande perigo.

Isso tem acontecido?

Lógico. Inúmeras vezes o tribunal decidiu, dizendo que a lei não é razoável. Isso me causa um frio na espinha. O Judiciário tem que fazer o que sempre fez: analisar a constitucionalidade das leis. E não se substituir ao legislador. Não fomos eleitos.

O senhor tem coragem de votar em um político com ficha suja?

Entendido que "ficha-suja" é unicamente quem tenha sido condenado por sentença judicial transitada em julgado, certamente não votarei em um deles. Importante, no entanto, é que eu possa exercer o direito de votar com absoluta liberdade, inclusive para votar em quem não deva.

O senhor está deixando o STF. Retoma a advocacia? Aceitará como cliente de sua banca um folha corrida?

Terei mais tempo para ler e estudar. Escrever também, fazer literatura. E trabalhar com o direito. Para defender quem tenha algum direito a reclamar, desde que eu me convença de que esse direito seja legítimo. Ainda que se o chame de "folha corrida".

E para Brasília o senhor pretende voltar?

Brasília é uma cidade afogada, seca, onde você não é uma pessoa, você é um cargo.




segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Defesa técnica - Remissão - ECA

TJ/RS

ECA. HOMOLOGAÇÃO DE REMISSÃO CUMULADA COM PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE SEM A PRESENÇA DE DEFENSOR - Não é possível homologar remissão concedida à adolescente, cujos pais não foram instruídos por defensor, face ao princípio constitucional de ampla defesa.
IMPOSSIBILIDADE DE CONVERSÃO DA REMISSÃO PRÉ-PROCESSUAL CUMULADA COM PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE PARA MEDIDA DE INTERNAÇÃO – Para a conversão da remissão cumulada com prestação de serviços a comunidade para a medida de internação deverá ser instaurado o procedimento pertinente ao devido processo legal.
NECESSIDADE DE OITIVA DO MENOR PARA REGRESSÃO DE MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA - Está consolidada na jurisprudência a imprescindibilidade da oitiva do menor para se realizar a regressão de medida sócio-educativa. A inobservância desta formalidade leva a anulação do ato, pois viola garantia da ampla defesa e do contraditório, impossibilitando o adolescente apresentar sua justificativa quanto ao eventual descumprimento das condições da medida estipulada. ORDEM CONCEDIDA. UNÂNIME.


HABEAS CORPUS
SEGUNDA CÂMARA ESPECIAL CÍVEL

N 70004531497
SÃO FRANCISCO DE PAULA

M.T.. IMPETRANTE
Z.L.C.. PACIENTE
J.D.V.I.J. S.F.P.. COATORA

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os integrantes da Segunda Câmara Especial Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, conceder a ordem.
Custas, na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário, o Excelentíssimo Senhor Desembargador Guinther Spode, Presidente, e a Dra. Ana Beatriz Iser, Juíza de Direito convocada.

Porto Alegre, 29 de julho de 2002.



MARIO CRESPO BRUM,
Relator.

RELATÓRIO

MARIO CRESPO BRUM (RELATOR) –
Trata-se de habeas corpus impetrado por MARCELO TURELA, em favor de ZILBER LUIS DE CONCEIÇÃO, alegando que o jovem está sofrendo coação ilegal por ato emanado do Juízo da Vara da Infância e da Juventude da Comarca de São Francisco de Paula.
Aponta como ilegalidades: a homologação de remissão sem o acompanhamento de defensor; a conversão da medida sócio-educativa de prestação de serviços à comunidade, decorrente de remissão, para internação, bem como determinação de internação sem oitiva do adolescente. Requer a concessão da ordem a fim de que seja o jovem liberado de sua internação.
Foram juntadas cópias de peças, inclusive da decisão atacada (fl. 18/20).
A autoridade apontada como coatora, a Magistrada da Vara da Infância e da Juventude da Comarca de São Francisco de Paula, enviou as informações requisitadas (fls. 25/38).
A liminar foi deferida (fls. 43/44).
Vieram os autos conclusos.
É o relatório.

VOTO

MARIO CRESPO BRUM (RELATOR) –
Verifica-se dos documentos de fl. 13/17, que foi homologada remissão cumulada com prestação de serviços à comunidade ao adolescente, em que os pais deste não foram assistidos por defensor, ensejando ilegalidade.
Em recente reunião do Conselho de Supervisão da Infância e Juventude, realizada no dia 21/07/02, foi editado o enunciado de nº 1, o qual estabelece:
"Estará constitucionalmente apta a receber homologação judicial apenas a remissão transacionada entre o Ministério Público, adolescente autor de ato infracional, seus pais ou responsável, desde que estes tenham sido assistidos por advogado ou defensor público.
Deliberado na Reunião do CONSIJ, em 21/07/02. Unânime."

De acordo com o enunciado, não é possível homologar remissão concedida à adolescente, cujos pais não foram instruídos por defensor, sob pena de eiva de ordem constitucional.
Adotando o posicionamento transcrito, tenho que a decisão homologatória deva ser desconstituída, a fim de se garantir a aplicação do princípio da ampla defesa ao menor. Dessa forma, o feito deve ser anulado ab initio, pois da concessão da remissão partiram todos os atos do procedimento, inclusive a internação do adolescente.
Por outro lado, ainda que se quisesse aceitá-la como válida, sua conversão para medida de internação (decisão de fls. 18/20) é ilegal. No instituto da remissão não há exame do mérito. Não implica o reconhecimento ou comprovação de responsabilidade, nem prevalece para efeitos de antecedentes. Com ela, pode ser incluída, eventualmente, a aplicação de quaisquer das medidas sócio-educativas, exceto a semiliberdade e a internação, como prevê o artigo 127 do ECA.
Estabeleceu este artigo limites à atuação ministerial e judicial, quando se trata de aplicação de medidas sem o devido processo legal, sem o exame do mérito da conduta infracional imputada.
Conforme leciona Julio Fabrini Mirabete:

“Fica ao prudente arbítrio do magistrado a aplicação de uma medida sócio-educativa, mais drástica, com exclusão da advertência, sendo de observar que para ser imposta medida de semi-liberdade ou internação, deverá ser instaurado o procedimento pertinente ao devido processo legal, art. 140, 141 e 182 a 190” (Júlio Fabrini Mirabete, do Ministério Público de São Paulo, Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, sob a coordenação de Munir Cury, Antônio Fernando do Amaral e Silva e Emílio Garcia Mendez, pg. 387/388).

Desta forma, não há dúvida de que a conversão da remissão cumulada com prestação de serviço à comunidade para medida sócio-educativa de internação é ilegal.
Também não se pode olvidar, que a regressão da medida sócio-educativa foi realizada sem inquirir-se o jovem. Já esta consolidada na jurisprudência a imprescindibilidade da oitiva do menor para tal ato. Há inclusive a súmula 265 do STJ neste sentido:

“É necessária a oitiva do menor infrator antes de decretar-se a regressão da medida sócio-educativa”.

É evidente que a inobservância dessa formalidade leva a anulação do ato, pois viola garantia da ampla defesa e do contraditório, impossibilitando o adolescente apresentar sua justificativa quanto ao eventual descumprimento das condições da medida estipulada.
Nesse sentido:
“EMENTA: HABEAS CORPUS. ECA. ATO INFRACIONAL. REGRESSAO. INTERNAMENTO. A DETERMINACAO DE REGRESSAO DE MEDIDAS RECLAMA A OITIVA DO MENOR INFRATOR PARA QUE SE MANIFESTE A RESPEITO DO DESCUMPRIMENTO, ASSEGURANDO-LHE O EXERCICIO DO DIREITO DE DEFESA E O ACOMPANHAMENTO DE CURADOR, SOB PENA DE NULIDADE. O ACOMPANHAMENTO DE DEFENSOR E IMPOSITIVO DESDE A INSTAURACAO DO PROCESSO DE APURACAO DE ATO INFRACIONAL. CONCEDEREM A ORDEM. (HABEAS CORPUS Nº 70002100485, SEGUNDA CÂMARA ESPECIAL CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: DES. MARILENE BONZANINI BERNARDI, JULGADO EM 28/03/01)”

“EMENTA:ECA. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. MEDIDA DE INTERNAÇÃO. FALTA DE OITIVA DO MENOR INFRATOR.
I - A decisão que determina a regressão da medida de semiliberdade para a de internação, por acarretar restrição ao status libertatis, não pode prescindir da oitiva do menor infrator (art. 110 e 111, V, do ECA).
II – A internação e a conseqüente expedição do mandado de busca e apreensão só podem ser determinadas em caráter provisório, a fim de que o menor seja encontrado e venha a se justificar.(STJ - T5 - QUINTA TURMA - RHC 9916/SP - 2000/0037154-8)”


“EMENTA: HABEAS CORPUS. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ATO INFRACIONAL. MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA. REGRESSÃO DA SEMILIBERDADE PARA INTERNAÇÃO.
1. A regressão de medida sócio-educativa está sujeita às garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório,
caracterizando-se constrangimento ilegal a sua decretação sem a oitiva do adolescente e a manifestação de seu defensor.
2. Ordem concedida. (STJ - T6 – SEXTA TURMA - HC 12839/SP - HABEAS CORPUS - 2000/0033322-0 ).

Por todo o exposto, é de ser desconstituído todo o procedimento.
Assim, concedo a ordem para o fim de desconstituir o procedimento desde seu início.
É o voto.

DES. GUINTHER SPODE (PRESIDENTE) – De acordo.


DRA. ANA BEATRIZ ISER – De acordo.



DES. GUINTHER SPODE (PRESIDENTE) – HABEAS CORPUS Nº 70004531497, de São Francisco de Paula: À UNANIMIDADE, CONCEDERAM A ORDEM.