Recomendo a leitura de texto muito bem escrito sobre o reajuste nos subsídios dos congressistas no patamar de 61,68%, igualando seus vencimento ao teto constitucional previsto para ministro do Supremo.
O efeito Tiririca no Supremo
26 de janeiro de 2011 | 0h 00
Aloísio de Toledo César - O Estado de S.Paulo
DESEMBARGADOR APOSENTADO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO (TJ-SP)
As instituições às vezes refletem contradições capazes de deixar atordoado o mais sereno dos brasileiros. Uma delas, bastante recente, está na circunstância de o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Cezar Peluso, detentor de linda carreira, com quase 40 anos de magistratura sem a mais leve mancha, a partir de 1.º de fevereiro passar a receber subsídios iguais aos do comediante Tiririca, eleito deputado federal.
O País acompanhou o fenômeno Tiririca, o mais votado de todos os tempos, apesar de sua claudicante alfabetização, tão controversa que tornou duvidosa a conclusão final do Judiciário a respeito de ser ele alfabetizado ou não. É pessoa simpática e detentora de talento próprio para as graças que costuma fazer e das quais se alimenta. Mas, sem dúvida alguma, a equiparação assusta.
A imagem do comediante não se confunde com a do Congresso Nacional, integrado por muitas pessoas de bom nível intelectual e cultural. Mas, com a decisão do final do ano passado, que vinculou os vencimentos dos deputados federais e senadores aos recebidos pelos ministros do STF, Tiririca e Cezar Peluso estarão empatados nos respectivos contracheques.
Em verdade, é pior do que isso, porque os deputados federais e senadores, por força daquelas vantagens extraordinárias para pagamento de despesas pessoais e de assessores, acabam recebendo bem mais do que um ministro do Supremo.
Isso tende a criar situação bastante constrangedora. Os representantes do povo detêm o poder de aprovar as leis e por isso lhes é dado decidir se portadores de mandatos eletivos devem receber subsídios iguais ou maiores que os dos ministros do STF e vice-versa.
O que não parece adequado é a equiparação, porque representa o risco de se perpetuar, ou seja, cada vez que houver aumento dos subsídios dos ministros do STF, o precedente poderá levar os congressistas e votarem nova lei em causa própria, promovendo outra vez a equiparação.
A Constituição federal, em seu artigo 37, inciso XI, determinou com toda a clareza que os subsídios dos ministros do Supremo devem ser os mais elevados, tanto que representam o valor máximo para cálculo dos demais. A equiparação levada a efeito no final de 2010 introduziu um aleijão na Carta Magna, ou seja, fez surgir um arremedo de paradigma, representado pelos valores que serão recebidos por deputados federais e senadores.
Sem nenhuma dúvida, não foi isso o que pretendeu o legislador constituinte de 1988 ao colocar o STF no topo da escala de vencimentos dos agentes do Estado. Se a moda pega, outros ocupantes de cargos, funções e empregos públicos, na administração direta e indireta, poderão postular a mesma equiparação a ministros e congressistas, uma vez que o precedente está cristalizado.
Após seguidas eleições, pacificamente realizadas, a democracia brasileira mostra-se efetivamente consolidada, sobretudo com a escolha, agora, de uma mulher para presidente da República. Mas todos sabemos que a democracia tem os seus inimigos. A equiparação de vencimentos de deputados federais, senadores e ministros, dando a ideia de uma nobreza intocável e favorecida, será sempre um prato cheio para aqueles que gostariam de estatizar até mesmo os banhos de praia.
Os vencimentos dos subsídios dos ministros do STF são fixados por lei federal. A última, de 2005, fixou-os em R$ 21.500, com elevação ao patamar de R$ 24.500 a partir de 1.º de janeiro de 2006. Pela Resolução n.º 423, legalmente prevista, esses valores foram elevados pelo STF para R$ 26.723,13. Com base neles são calculados os vencimentos dos ministros dos outros tribunais, juízes e promotores de Justiça, federais e estaduais.
Está prevista para o início da atual legislatura a votação pelo Congresso do projeto que concede ligeira majoração aos vencimentos dos ministros do Supremo. Isso ocorrerá pela primeira vez num momento em que ministros e congressistas recebem os mesmos subsídios e, claro, poderá provocar constrangimentos.
A equiparação efetivada ocorreu levando em conta tão somente os valores recebidos pelos ministros da Suprema Corte, ou seja, não houve alteração do princípio constitucional que coloca os subsídios dos ministros do STF na condição de os mais elevados do País. Isso significa que a possível aprovação do reajuste pretendido pelo Supremo não se estenderá automaticamente aos congressistas, muito embora, dado o precedente, fique em aberto a possibilidade de estes iniciarem nova corrida para igualar os subsídios. Vê-se que se trata de questão tormentosa, capaz de repercutir desastrosamente entre a população espectadora.
O acesso ao cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal representa o coroamento de qualquer carreira jurídica. É uma honra ser escolhido, porém a escolha não representa um agradável desfecho de vida profissional, representando, ao contrário, servidão interminável, decorrente do inacreditável volume de processos que cada ministro tem a obrigação de julgar.
Respeitadas as exceções, os ministros da Supremo Corte trabalham muitas vezes mais do que a maioria dos deputados e senadores. E, muito embora ocupem o cargo máximo na hierarquia dos agentes públicos, não será confortável para eles receberem os mesmos subsídios que serão pagos aos parlamentares no Congresso Nacional - inclusive ao deputado federal Tiririca.
A equiparação em favor dos deputados federais e senadores ocorreu por decreto legislativo, no final do ano passado, aprovado em regime de urgência e resultando em majoração de 61,68% nos seus subsídios, ou seja, índice bastante superior ao da inflação no período. Como se efetivou por decreto legislativo, nem houve necessidade de sanção do presidente da República.
DESEMBARGADOR APOSENTADO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO (TJ-SP)
"Como concebem as pessoas, incluindo também os juristas, quanto à condenação, algo de análogo àquilo que ocorre quando um homem morre: a decisão condenatória, com o aparato que todos conhecem mais ou menos, é uma espécie de funeral; terminada a cerimônia, (...) não se pensa mais no falecido. Sob certo aspecto, pode-se assemelhar a penitenciária a um cemitério; mas esquece-se que o condenado é um sepultado vivo" (CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal).
quarta-feira, 26 de janeiro de 2011
terça-feira, 25 de janeiro de 2011
PEDRO ABRAMOVAY E UM RÉQUIEM PARA A POLÍTICA CRIMINAL DO GOVERNO DILMA
Moysés Pinto Neto
Pesquisador transdisciplinar da violência. Doutorando em Filosofia (PUCRS). Mestre em Ciências Criminais (PUCRS). Professor de Criminologia e Direito Penal da ULBRA.
A notícia de que Pedro Abramovay foi demitido da Secretaria Nacional de Drogas é o primeiro sinal das piores expectativas que se avizinhavam desde que Dilma assumiu o Planalto em matéria de política criminal. Se havia dúvidas acerca da gradual e cada vez mais visível transição da preponderância do realismo de esquerda no Governo Lula (refiro-me, para os leigos, a políticas de prevenção à violência tal como o PRONASCI, que investem em melhorias na polícia, programas educativos, políticas de redução de danos etc.) para a esquerda punitiva no Governo Dilma, elas hoje parecem ter acabado.
O que Pedro Abramovay fez de tão grave para ser demitido? Simples, declarou que os pequenos traficantes (leia-se, a juventude pobre e negra – geralmente entre 13 a 25 anos – das favelas brasileiras que vende drogas para toda sociedade, inclusive boa parte da “de bem”) não deveriam ser encarcerados.
A situação surreal, no entanto, deve ser explicada, tal como Kafka dedicou longas páginas para narrar o absurdo que, no entanto, é o próprio mundo real em que vivemos. Respeito muito amigos petistas – alguns conheço pessoalmente, outros estão por aí na blogosfera – que depositaram severas esperanças em Dilma como legatária do Governo Lula, em especial naquilo que foi de melhor: eliminação da miséria e redução da desigualdade social. No entanto, Dilma já vinha mandando vários sinais negativos, e a área criminal – para um ponto de vista de esquerda – hoje se apresenta como a pior. Atribuo basicamente isso a três razões:
1) A “Guerra do RJ” – o “sucesso” da entrada do exército no Complexo do Alemão, aplaudido inclusive por parte da sociologia crítica nacional (com pessoas que eu admiro e respeito profundamente, mas discordo com veemência), apresentou louros políticos inquestionáveis para Sérgio Cabral e Dilma. Ficou claro que o antibelicismo radical não seria matriz da política criminal baseada nas UPPs. Aliás, “Tropa de Elite” – com seu sensacionalismo fascista – já havia preparado esse clima para esse evento, tornando o BOPE um símbolo nacional (o BOPE, uma tropa de extermínio). Aliás, a classe média só não aprovou mais porque faltou o banho de sangue que Capitão Nascimento tinha prometido. Se não veio, bem, ok, e ainda agradamos nossos amigos da esquerda que comemoram o “Estado de Direito” na favela.
2) A nomeação de José Eduardo Cardozo e Mário do Rosário – nomear para o Ministério da Justiça e para a Secretaria dos Direitos Humanos dois políticos que acreditam que a pauta dos direitos humanos no Brasil é o aspecto mais policialesco e caricato do “politicamente correto” foi também vergonhoso. Maria do Rosário, em especial, prestou um desserviço monstruoso ao Brasil ao ser responsável pela mudança nos crimes sexuais, prevendo a figuras estapafúrdias e mantendo moralismos como a criminalização da casa de prostituição (não é piada, isso é crime no Brasil!) e cometendo erros técnicos crassos.
3) O recuo de José Eduardo Cardozo das declarações de Abramovay: se era um bom sinal a troca de nome da Secretaria Nacional Anti-Drogas (nome tipicamente vinculado à War on Drugs de Nixon e Reagan) para Secretaria Nacional de Drogas, e transpô-la da pasta da defesa para a justiça (embora o ideal fosse para a saúde), tudo foi rapidamente derrubado. Pedro Abramovay disse o óbvio: é preciso parar com a monstruosa inflação carcerária no Brasil, quarta maior população prisional do mundo, atrás apenas dos EUA, China e Rússia, da qual quase 30% são relacionados com a política de drogas. O encarceramento dos pequenos traficantes só piora a situação: agudiza conflitos, não resolve nem o problema do uso problemático de drogas nem o do comércio, provoca o impacto da passagem no cárcere no preso, alimenta as fileiras do “crime organizado” (facções que dominam as prisões, como o PCC), destrói as opções de vida do sujeito e é mais do que tudo hipócrita: vivendo na periferia e com poucas opções, o sujeito (é bom lembrar que geralmente aos 12, 13 anos) vê a traficância como uma opção de vida atraente e acaba embarcando nela. É preciso ver que as gravíssimas questões biopolíticas da política de drogas (o higienismo da abstinência, a intolerância com a diferença, a gestão do corpo do drogado etc.) hoje em dia são menos importantes que a thanatopolítica da guerra às drogas, que se traduz como verdadeira política de extermínio no Brasil. Todo mundo – mesmo uma parte da esquerda menos interessada na questão criminal – dá de ombros para essa política exatamente porque se trata da vida nua, ou seja, da vida descartável.
É óbvio que todas as patrulhas reacionárias e obscurantistas iriam se revoltar contra essa posição. O moralismo atroz que se manifesta no discurso que justifica a guerra às drogas – para qual concorrem os mais diversos “empresários morais” – somados à ignorância da população acerca do que está em jogo e o clima de pânico moral criado pela mídia certamente trariam resistência. Mas o ridículo foi o recuo covarde, minguado, poliqueiro de um Ministro da Justiça que, infelizmente, não teve coragem para dar um basta ao genocídio da população pobre em andamento. Em vez disso, prefiriu aderir ao discurso mais rasteiro e fazer aquilo que Elena Larrauri chama de “populismo punitivo”.
Se observamos o marcante artigo escrito por Maria Lucia Karam há mais de dez anos atrás, quando anunciava a esquerda punitiva, podemos observar que se trata exatamente da política adotada pelo Governo Dilma: “combate” ao crime de colarinho branco, aos crimes vinculados aos movimentos sociais (racismo, violência contra a mulher etc.) e “combate ao crime organizado” (o cifrão que Maria Lucia tão bem colocou como uma simples manobra retórica para justificar políticas de lei e ordem típicas da direita). A ênfase no realismo de esquerda típico do Governo Lula com o PRONASCI vai perdendo peso a cada dia para o punitivismo de esquerda, a aposta no sistema penal como mecanismo de legitimação do poder político-eleitoral.
O detalhe é que – como o amigo Marcelo Mayora apontou no twitter – o próprio Ministério da Justiça encomendou pesquisa sobre o tema que lhe indicava o caminho da descarcerização. Não importa que os setores mais retrógrados e cada vez mais ignorantes do mundo jurídico tachem a pesquisa de “garantista” ou algo do gênero; é uma pesquisa científica, com dados claros e conclusões importantes, e quem nesse caso sofre da mais fanática cegueira ideológica são esses próprios conservadores (agora também obscurantistas: odeiam “teorias” e a “academia”; em vez disso, propõe a prática que se dá no meio da papelada dos processos e do ar condicionado dos fóruns, como se isso fosse a vida real). O Ministério da Justiça agora joga fora os dados que ele próprio coleta em nome do populismo punitivo.
Na prática, Dilma está numa posição bem parecida com Bill Clinton nos anos 90. Clinton sabia que a pena de morte era a questão da maior densidade eleitoral, tendo sido responsável pela derrota do Partido Democrata nas eleições anteriores. Aderindo ao “pragmatismo”, resolveu ele próprio se mostrar “duro” e executar vários condenados, tendo por isso sido eleito. Na prática, o mega-encarceramento e as operações bélicas que Dilma e o Min. José Eduardo Cardozo estão aderindo pouco diferem disso. Todo o resto é pequeno diante da Guerra em andamento.
Pesquisador transdisciplinar da violência. Doutorando em Filosofia (PUCRS). Mestre em Ciências Criminais (PUCRS). Professor de Criminologia e Direito Penal da ULBRA.
A notícia de que Pedro Abramovay foi demitido da Secretaria Nacional de Drogas é o primeiro sinal das piores expectativas que se avizinhavam desde que Dilma assumiu o Planalto em matéria de política criminal. Se havia dúvidas acerca da gradual e cada vez mais visível transição da preponderância do realismo de esquerda no Governo Lula (refiro-me, para os leigos, a políticas de prevenção à violência tal como o PRONASCI, que investem em melhorias na polícia, programas educativos, políticas de redução de danos etc.) para a esquerda punitiva no Governo Dilma, elas hoje parecem ter acabado.
O que Pedro Abramovay fez de tão grave para ser demitido? Simples, declarou que os pequenos traficantes (leia-se, a juventude pobre e negra – geralmente entre 13 a 25 anos – das favelas brasileiras que vende drogas para toda sociedade, inclusive boa parte da “de bem”) não deveriam ser encarcerados.
A situação surreal, no entanto, deve ser explicada, tal como Kafka dedicou longas páginas para narrar o absurdo que, no entanto, é o próprio mundo real em que vivemos. Respeito muito amigos petistas – alguns conheço pessoalmente, outros estão por aí na blogosfera – que depositaram severas esperanças em Dilma como legatária do Governo Lula, em especial naquilo que foi de melhor: eliminação da miséria e redução da desigualdade social. No entanto, Dilma já vinha mandando vários sinais negativos, e a área criminal – para um ponto de vista de esquerda – hoje se apresenta como a pior. Atribuo basicamente isso a três razões:
1) A “Guerra do RJ” – o “sucesso” da entrada do exército no Complexo do Alemão, aplaudido inclusive por parte da sociologia crítica nacional (com pessoas que eu admiro e respeito profundamente, mas discordo com veemência), apresentou louros políticos inquestionáveis para Sérgio Cabral e Dilma. Ficou claro que o antibelicismo radical não seria matriz da política criminal baseada nas UPPs. Aliás, “Tropa de Elite” – com seu sensacionalismo fascista – já havia preparado esse clima para esse evento, tornando o BOPE um símbolo nacional (o BOPE, uma tropa de extermínio). Aliás, a classe média só não aprovou mais porque faltou o banho de sangue que Capitão Nascimento tinha prometido. Se não veio, bem, ok, e ainda agradamos nossos amigos da esquerda que comemoram o “Estado de Direito” na favela.
2) A nomeação de José Eduardo Cardozo e Mário do Rosário – nomear para o Ministério da Justiça e para a Secretaria dos Direitos Humanos dois políticos que acreditam que a pauta dos direitos humanos no Brasil é o aspecto mais policialesco e caricato do “politicamente correto” foi também vergonhoso. Maria do Rosário, em especial, prestou um desserviço monstruoso ao Brasil ao ser responsável pela mudança nos crimes sexuais, prevendo a figuras estapafúrdias e mantendo moralismos como a criminalização da casa de prostituição (não é piada, isso é crime no Brasil!) e cometendo erros técnicos crassos.
3) O recuo de José Eduardo Cardozo das declarações de Abramovay: se era um bom sinal a troca de nome da Secretaria Nacional Anti-Drogas (nome tipicamente vinculado à War on Drugs de Nixon e Reagan) para Secretaria Nacional de Drogas, e transpô-la da pasta da defesa para a justiça (embora o ideal fosse para a saúde), tudo foi rapidamente derrubado. Pedro Abramovay disse o óbvio: é preciso parar com a monstruosa inflação carcerária no Brasil, quarta maior população prisional do mundo, atrás apenas dos EUA, China e Rússia, da qual quase 30% são relacionados com a política de drogas. O encarceramento dos pequenos traficantes só piora a situação: agudiza conflitos, não resolve nem o problema do uso problemático de drogas nem o do comércio, provoca o impacto da passagem no cárcere no preso, alimenta as fileiras do “crime organizado” (facções que dominam as prisões, como o PCC), destrói as opções de vida do sujeito e é mais do que tudo hipócrita: vivendo na periferia e com poucas opções, o sujeito (é bom lembrar que geralmente aos 12, 13 anos) vê a traficância como uma opção de vida atraente e acaba embarcando nela. É preciso ver que as gravíssimas questões biopolíticas da política de drogas (o higienismo da abstinência, a intolerância com a diferença, a gestão do corpo do drogado etc.) hoje em dia são menos importantes que a thanatopolítica da guerra às drogas, que se traduz como verdadeira política de extermínio no Brasil. Todo mundo – mesmo uma parte da esquerda menos interessada na questão criminal – dá de ombros para essa política exatamente porque se trata da vida nua, ou seja, da vida descartável.
É óbvio que todas as patrulhas reacionárias e obscurantistas iriam se revoltar contra essa posição. O moralismo atroz que se manifesta no discurso que justifica a guerra às drogas – para qual concorrem os mais diversos “empresários morais” – somados à ignorância da população acerca do que está em jogo e o clima de pânico moral criado pela mídia certamente trariam resistência. Mas o ridículo foi o recuo covarde, minguado, poliqueiro de um Ministro da Justiça que, infelizmente, não teve coragem para dar um basta ao genocídio da população pobre em andamento. Em vez disso, prefiriu aderir ao discurso mais rasteiro e fazer aquilo que Elena Larrauri chama de “populismo punitivo”.
Se observamos o marcante artigo escrito por Maria Lucia Karam há mais de dez anos atrás, quando anunciava a esquerda punitiva, podemos observar que se trata exatamente da política adotada pelo Governo Dilma: “combate” ao crime de colarinho branco, aos crimes vinculados aos movimentos sociais (racismo, violência contra a mulher etc.) e “combate ao crime organizado” (o cifrão que Maria Lucia tão bem colocou como uma simples manobra retórica para justificar políticas de lei e ordem típicas da direita). A ênfase no realismo de esquerda típico do Governo Lula com o PRONASCI vai perdendo peso a cada dia para o punitivismo de esquerda, a aposta no sistema penal como mecanismo de legitimação do poder político-eleitoral.
O detalhe é que – como o amigo Marcelo Mayora apontou no twitter – o próprio Ministério da Justiça encomendou pesquisa sobre o tema que lhe indicava o caminho da descarcerização. Não importa que os setores mais retrógrados e cada vez mais ignorantes do mundo jurídico tachem a pesquisa de “garantista” ou algo do gênero; é uma pesquisa científica, com dados claros e conclusões importantes, e quem nesse caso sofre da mais fanática cegueira ideológica são esses próprios conservadores (agora também obscurantistas: odeiam “teorias” e a “academia”; em vez disso, propõe a prática que se dá no meio da papelada dos processos e do ar condicionado dos fóruns, como se isso fosse a vida real). O Ministério da Justiça agora joga fora os dados que ele próprio coleta em nome do populismo punitivo.
Na prática, Dilma está numa posição bem parecida com Bill Clinton nos anos 90. Clinton sabia que a pena de morte era a questão da maior densidade eleitoral, tendo sido responsável pela derrota do Partido Democrata nas eleições anteriores. Aderindo ao “pragmatismo”, resolveu ele próprio se mostrar “duro” e executar vários condenados, tendo por isso sido eleito. Na prática, o mega-encarceramento e as operações bélicas que Dilma e o Min. José Eduardo Cardozo estão aderindo pouco diferem disso. Todo o resto é pequeno diante da Guerra em andamento.
terça-feira, 18 de janeiro de 2011
Sistema carcerário brasileiro - por LFG
EXECUÇÃO PENAL
Sistema carcerário brasileiro: a latrina da justiça criminal
Luiz Flávio Gomes
Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP e Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).
Se a Justiça criminal, como disse enfaticamente o juiz Luciano Losekann (Estado de S. Paulo de 14.11.10, p. C6), é a cloaca (o lugar imundo, a fossa, o esgoto) da Justiça social (pouco importando se o crime é do pobre ou do colarinho branco, fraudulento ou violento, do preto ou do branco), o sistema carcerário brasileiro constitui sem sombra de dúvida a latrina (recinto de dejeções, vaso sanitário) da Justiça criminal. A primeira pesquisa que nosso Instituto está disponibilizando para todos (www.ipcluizflaviogomes.com.br) bem retrata essa triste realidade.
As prisões, em países como o Brasil, abandonaram por completo o projeto humanista da modernidade, que as via como um centro disciplinar/correcional. Na era da pós-modernidade (era atual), em lugar de experimentar avanços civilizatórios, as prisões retrocederam aos escombros e obscuridades da Idade Média.
As duas rebeliões ocorridas em presídios do Maranhão (Complexo de Pedrinhas) e do Amazonas, no mês de novembro de 2010, com 21 mortos, evidenciaram, uma vez mais, as entranhas infestadas das misérias dessa nossa latrina, que se chama sistema carcerário brasileiro. Nota da Comissão Interamericana de Direitos Humanos sublinhou a responsabilidade do Brasil em relação às pessoas que estão sob sua guarda.
Essas misérias vêm sendo denunciadas (corajosamente) pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) desde (sobretudo) 2008. Praticamente todos os Estados brasileiros (26 Estados mais o Distrito Federal) apresentam as mesmas (e indescritíveis) mazelas: superpopulação carcerária, déficit no número de vagas, condições carcerárias deploráveis, desrespeito absoluto aos direitos das pessoas presas, demora no julgamento dos processos (44% dos presos não contam com sentença final), intenso tráfico interno de drogas, ausência de tratamento aos drogados, AIDS, violência indescritível, tortura, assassinatos em série, corrupção de agentes penitenciários, ociosidade, cooptação das organizações criminosas, rebeliões etc.
Por que chegamos nesse túnel (da ausência absoluta de civilização) que não conta (neste instante) com nenhuma luz no seu final? Porque o projeto moderno de prisão (chamado de disciplinar/correcional, ou seja, a prisão moderna teria como finalidade a correção do preso, como nos ensinava Foucault) naufragou completamente, sobretudo em países como o Brasil, onde é muito forte o populismo penal, o autoritarismo e as desigualdades sociais (de acordo com o último IDH o Brasil é o 72º país no ranking mundial).
O escopo corretivo (porque ainda se confiava na recuperação do preso) que norteou a filosofia das prisões durante muitas décadas desapareceu por completo (morreu, evaporou-se) em muitos países. A rigor, no Brasil, pode-se dizer que esse projeto moderno nunca foi levado muito a sério. De qualquer maneira, até a década de 80 (do século XX), a filosofia (talvez mito) da ressocialização do preso ainda convivia (embora ocupando a posição de prima pobre) com as atrocidades prisionais.
Nossa atual Lei de Execução Penal foi editada nesta década (Lei 7.210, de 11.07.84). No seu art. 1º ela diz: "A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado". Ainda se falava no mito da "integração social", com o sentido de ressocialização, recuperação ou reinserção do preso na sociedade.
Da década de 90 (do século XX) para frente, tendo como marco a Lei dos crimes hediondos (Lei 8.072/90), de forma inequívoca, o velho e mitológico modelo corretivo/disciplinar (de recuperação do preso, reinserção social, ressocialização) cedeu espaço para outro tipo de prisão, agora submetida (subordinada) a um projeto punitivista "securitário" (de segurança máxima).
Cuida-se de um novo modelo de prisão (como diz M. Sozzo) "que abandona completamente como finalidade declarada a 'correção do criminoso', abraçando outros objetivos como legitimação da sua própria existência. Por um lado, a retribuição do dano gerado pelo delito por meio da produção intencionada de dor no preso. Por outro, de forma prioritária, a incapacitação ou neutralização do preso, durante um lapso de tempo mais ou menos prolongado, de forma tal que não possa reincidir no delito, 'protegendo o público', gerando 'segurança'". Os presídios e as cadeias, como latrinas do sistema criminal brasileiro, passam a ser centros sanguinários e violentos de distribuição de dor e de sofrimento excessivo (abusivo) (o filme Tropa de Elite 2 procurou mostrar isso de forma implacável).
O novo modelo de prisão, chamado de prisão-jaula ou prisão-depósito (ou, ainda, de prisão-latrina), é uma prisão sem trabalho, sem educação, sem família, sem observação, classificação e tratamento, sem flexibilização no encarceramento, sem segurança, sem individualidade, sem privacidade, sem respeito aos direitos mínimos das pessoas presas etc.
Não se trata, portanto, de uma prisão-fábrica ou de uma prisão-escola ou mesmo de uma prisão-mosteiro ou de uma prisão-família ou ainda de uma prisão-asilo ou de uma prisão-hospital. Tudo que se relacionava com a correção/disciplina desapareceu. Cuida-se (agora) de uma prisão que significa só encarceramento e isolamento, regulamentação, vigilância e sanção (mais dor, castigo, sofrimento, embrutecimento). É uma prisão (mais ou menos) segura. Mas com as características da "prisão-jaula" ou da "prisão-depósito" ou, ainda, como pensamos, da "prisão-latrina".
É disso que derivam o recolhimento de pessoas em contêiners (como foi constatado em Espírito Santo, por exemplo), as rebeliões, os degolamentos, as mortes, os assassinatos a sangue frio etc. De um modo geral a sociedade brasileira (que nem sequer protesta contra a educação sucateada, as filas da saúde, a morosidade da justiça etc.) não manifesta nenhuma preocupação com todo esse mundo de horrores medievais. Esquece-se de que tudo que diz respeito à condição humana também lhe diz respeito. Mas tudo tem seu preço. A criminalidade no nosso país não apresenta nenhum sinal de arrefecimento e parte dela é gerada justamente dentro das prisões-latrinas.
Sistema carcerário brasileiro: a latrina da justiça criminal
Luiz Flávio Gomes
Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP e Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).
Se a Justiça criminal, como disse enfaticamente o juiz Luciano Losekann (Estado de S. Paulo de 14.11.10, p. C6), é a cloaca (o lugar imundo, a fossa, o esgoto) da Justiça social (pouco importando se o crime é do pobre ou do colarinho branco, fraudulento ou violento, do preto ou do branco), o sistema carcerário brasileiro constitui sem sombra de dúvida a latrina (recinto de dejeções, vaso sanitário) da Justiça criminal. A primeira pesquisa que nosso Instituto está disponibilizando para todos (www.ipcluizflaviogomes.com.br) bem retrata essa triste realidade.
As prisões, em países como o Brasil, abandonaram por completo o projeto humanista da modernidade, que as via como um centro disciplinar/correcional. Na era da pós-modernidade (era atual), em lugar de experimentar avanços civilizatórios, as prisões retrocederam aos escombros e obscuridades da Idade Média.
As duas rebeliões ocorridas em presídios do Maranhão (Complexo de Pedrinhas) e do Amazonas, no mês de novembro de 2010, com 21 mortos, evidenciaram, uma vez mais, as entranhas infestadas das misérias dessa nossa latrina, que se chama sistema carcerário brasileiro. Nota da Comissão Interamericana de Direitos Humanos sublinhou a responsabilidade do Brasil em relação às pessoas que estão sob sua guarda.
Essas misérias vêm sendo denunciadas (corajosamente) pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) desde (sobretudo) 2008. Praticamente todos os Estados brasileiros (26 Estados mais o Distrito Federal) apresentam as mesmas (e indescritíveis) mazelas: superpopulação carcerária, déficit no número de vagas, condições carcerárias deploráveis, desrespeito absoluto aos direitos das pessoas presas, demora no julgamento dos processos (44% dos presos não contam com sentença final), intenso tráfico interno de drogas, ausência de tratamento aos drogados, AIDS, violência indescritível, tortura, assassinatos em série, corrupção de agentes penitenciários, ociosidade, cooptação das organizações criminosas, rebeliões etc.
Por que chegamos nesse túnel (da ausência absoluta de civilização) que não conta (neste instante) com nenhuma luz no seu final? Porque o projeto moderno de prisão (chamado de disciplinar/correcional, ou seja, a prisão moderna teria como finalidade a correção do preso, como nos ensinava Foucault) naufragou completamente, sobretudo em países como o Brasil, onde é muito forte o populismo penal, o autoritarismo e as desigualdades sociais (de acordo com o último IDH o Brasil é o 72º país no ranking mundial).
O escopo corretivo (porque ainda se confiava na recuperação do preso) que norteou a filosofia das prisões durante muitas décadas desapareceu por completo (morreu, evaporou-se) em muitos países. A rigor, no Brasil, pode-se dizer que esse projeto moderno nunca foi levado muito a sério. De qualquer maneira, até a década de 80 (do século XX), a filosofia (talvez mito) da ressocialização do preso ainda convivia (embora ocupando a posição de prima pobre) com as atrocidades prisionais.
Nossa atual Lei de Execução Penal foi editada nesta década (Lei 7.210, de 11.07.84). No seu art. 1º ela diz: "A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado". Ainda se falava no mito da "integração social", com o sentido de ressocialização, recuperação ou reinserção do preso na sociedade.
Da década de 90 (do século XX) para frente, tendo como marco a Lei dos crimes hediondos (Lei 8.072/90), de forma inequívoca, o velho e mitológico modelo corretivo/disciplinar (de recuperação do preso, reinserção social, ressocialização) cedeu espaço para outro tipo de prisão, agora submetida (subordinada) a um projeto punitivista "securitário" (de segurança máxima).
Cuida-se de um novo modelo de prisão (como diz M. Sozzo) "que abandona completamente como finalidade declarada a 'correção do criminoso', abraçando outros objetivos como legitimação da sua própria existência. Por um lado, a retribuição do dano gerado pelo delito por meio da produção intencionada de dor no preso. Por outro, de forma prioritária, a incapacitação ou neutralização do preso, durante um lapso de tempo mais ou menos prolongado, de forma tal que não possa reincidir no delito, 'protegendo o público', gerando 'segurança'". Os presídios e as cadeias, como latrinas do sistema criminal brasileiro, passam a ser centros sanguinários e violentos de distribuição de dor e de sofrimento excessivo (abusivo) (o filme Tropa de Elite 2 procurou mostrar isso de forma implacável).
O novo modelo de prisão, chamado de prisão-jaula ou prisão-depósito (ou, ainda, de prisão-latrina), é uma prisão sem trabalho, sem educação, sem família, sem observação, classificação e tratamento, sem flexibilização no encarceramento, sem segurança, sem individualidade, sem privacidade, sem respeito aos direitos mínimos das pessoas presas etc.
Não se trata, portanto, de uma prisão-fábrica ou de uma prisão-escola ou mesmo de uma prisão-mosteiro ou de uma prisão-família ou ainda de uma prisão-asilo ou de uma prisão-hospital. Tudo que se relacionava com a correção/disciplina desapareceu. Cuida-se (agora) de uma prisão que significa só encarceramento e isolamento, regulamentação, vigilância e sanção (mais dor, castigo, sofrimento, embrutecimento). É uma prisão (mais ou menos) segura. Mas com as características da "prisão-jaula" ou da "prisão-depósito" ou, ainda, como pensamos, da "prisão-latrina".
É disso que derivam o recolhimento de pessoas em contêiners (como foi constatado em Espírito Santo, por exemplo), as rebeliões, os degolamentos, as mortes, os assassinatos a sangue frio etc. De um modo geral a sociedade brasileira (que nem sequer protesta contra a educação sucateada, as filas da saúde, a morosidade da justiça etc.) não manifesta nenhuma preocupação com todo esse mundo de horrores medievais. Esquece-se de que tudo que diz respeito à condição humana também lhe diz respeito. Mas tudo tem seu preço. A criminalidade no nosso país não apresenta nenhum sinal de arrefecimento e parte dela é gerada justamente dentro das prisões-latrinas.
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