quarta-feira, 16 de maio de 2012

Pedido de Liberdade Provisória c/c Medida Cautelar

EXCELENTÍSSIMA SENHORA JUÍZA DE DIREITO DO JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER DA CAPITAL/SC

Processo nº xxxxxxxxxxx Em caráter de URGÊNCIA!



xxxxxxxxxxxxxxxxx, qualificado nos autos do APF em epígrafe, atualmente recolhido cautelarmente na Casa do Albergado, bairro Trindade, vem, respeitosamente, à elevada presença de Vossa Excelência, por seu Advogado regularmente constituído (fl. xx), com fulcro nos artigos 5º, LV, LVII, LXV e LXVI, da Constituição Federal, 321 do Código de Processo Penal, acrescentado pela Lei 12.403/11, entre outros dispositivos legais pertinentes, requerer LIBERDADE PROVISÓRIA c/c MEDIDA CAUTELAR pelas razões de fato e de direito a seguir expostas.


I – ESCORÇO FÁTICO

De acordo com o caderno indiciário, em xx.xx.xx o Peticionário foi preso em flagrante, por ter, em tese, adentrado na casa de sua ex-companheira, Sra. xxxxxxxxxxx que, ressalta-se desde já, mantinha relacionamento afetivo esporádico com o Peticionário, e entrado em luta corporal com xxx(fl. x), amigo íntimo do indiciado, que, naquele momento, estava em companhia da suposta vítima. Segundo depoimento de Sra. xxxxxx na Delegacia de Polícia, não houve qualquer tipo de agressão do Peticionário contra sua pessoa (fl.11). Na data da lavratura do flagrante, o Juiz plantonista, Excelentíssimo xxxxxxxx, converteu a prisão em flagrante em preventiva com os seguintes fundamentos, assim sintetizados: “(...) consta do caderno indiciário que o detido, usuário de substâncias intorpecentes (sic), possui caráter voltado à violência, porquanto perpetrado contra seus próprios parentes e que, pelos depoimentos, não é a primeira vez que ocorrem fatos semelhantes. A conversão do flagrante em prisão preventiva se faz necessária para garantia da ordem publica bem como da instrução criminal.” (fls. xx).

Designada audiência de ratificação, as supostas vítimas, xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx, informaram que o Peticionário é dependente químico e não mantiveram a representação em seu desfavor (fl.xx). Teria o Peticionário, segundo o APF, cometido, em tese, os delitos previstos nos artigos 147, 129, § 9º, 163, todos do CP, cumulado com o artigo 7º, II, da Lei 11.340/2006. São os fatos no essencial.

II – CABIMENTO DA LIBERDADE PROVISÓRIA c/c MEDIDA CAUTELAR. AUSÊNCIA DE PROPORCIONALIDADE ENTRE OS SUPOSTOS DELITOS PRATICADOS E A PRISÃO PREVENTIVA.

Como ressaltado, o Magistrado plantonista consignou, em decisão que converteu o flagrante em prisão preventiva, que o Peticionário, “possui caráter voltado à violência”, e que a “prisão preventiva se faz necessária para garantia da ordem publica bem como da instrução criminal.”

Com o devido acato, tal entendimento merece uma reanálise de Vossa Excelência. Consabido que com o advento da Lei 12.403/11 a prisão no processo penal brasileiro ganhou nova roupagem, relevando o princípio constitucional da não culpabilidade, estatuído no art. 5º, LVII, da CF, e da dignidade humana (art. 1º, III, da CF), uma vez que a prisão mais desumaniza do que ressocializa. O novel § 6º do art. 282 do CPP, acrescentado pela referida Lei, prescreve o seguinte:
“Art. 282. As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a: (...) § 6o A prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (art. 319).”

Exsurge, com a alteração legislativa implementada pela Lei 12.403, um novo requisito para a decretação da prisão preventiva: a imprescindível a análise da possibilidade de imposição de medida menos onerosa, subsidiária da prisão preventiva, porquanto, esta, é medida extrema (extrema ratio da ultima ratio, segundo Luiz Flavio Gomes). (Prisão e medidas cautelares: Comentários à Lei 12.403, de 4 de maio de 2011/Alice Bianchini... [et al]; coordenação Luiz Flávio Gomes, Ivan Luís Marques. – São Paulo: Editora Revistas dos Tribunais, 2011, p. 25).

Hialino, data venia, que uma das nove medidas cautelares, cumuladas ou não, previstas no art. 319 do CPP é cabível ao caso sob análise de V. Exa. A uma, porquanto na hipótese da denúncia ser oferecida e recebida, imputará ao Peticionário as práticas de lesão corporal leve no âmbito doméstico (art. 129, § 9º do CP), ameaça (art. 147 do CP) e dano (art. 163 do CP), em concurso formal, de modo que a reprimenda não ultrapassará os quatro anos. Desse modo, a condição objetiva do inc. I do art. 313 do CPP (Será admitida a prisão preventiva “nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos”;), com o devido respeito, não foi atendida,porquanto será imputado ao Peticionário tipos penais com pena máxima abstrata não superior a quatro anos.

A condição subjetiva (inc. II do art. 313), outrossim, é favorável, tendo em vista que o Peticionário não ostenta qualquer tipo de passagens por Distrito Policiais (como bem asseverou o Ilmo. Representante do Parquet em seu parecer – fls. xx); ademais sempre laborou de forma lícita, como faz prova as diversas anotações em sua CTPS (doc. 01).

Nesse passo, importante salientar que, em audiência de ratificação seus familiares não ratificaram as representações, com a clara consciência de que, diferentemente do entendimento consignado na decisão que decretou a medida extrema, o Peticionário em seu dia a dia não é violento, cometendo os fatos em momento de desatino causado por uso de drogas e ciúmes, uma vez que a Sra. xxxxxxxxxxxx, conquanto separada de fato, mantinha encontros afetivos com o Peticionário e estava, naquele momento, com seu amigo íntimo.

Tanto é assim que a suposta vítima, Sra. xxxxxxxxx, conquanto ratificado a representação contra o Peticionário, não requereu qualquer Medida Protetiva de Urgência, instituto que pode ser concedido pelo juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida, conforme redação do art. 19 da Lei 11.340/11.

Nesse diapasão, importante a transcrição do escólio de Sanches Cunha acerca do tema, verbis:

“(...) a prisão preventiva somente é cabível, nos termos do art. 42 da Lei 11.340/2006, para garantir a execução das medidas protetivas. Pressupõe assim, necessariamente, que medidas protetivas à vítima já tenham sido deferidas e, posteriormente, descumpridas pelo agressor. (...) Em muitos casos, não há qualquer expediente anterior e não se pediu qualquer imposição de qualquer medida de proteção, sendo aquela a primeira notícia que se tem dos fatos. Em uma hipótese dessa, eventual adoção da medida excepcional se reveste de inegável ilegalidade. Há, portanto, por assim dizer, uma ordem cronológica a ser seguida: primeiro são impostas medidas de proteção e, segundo, caso descumpridas, se decreta a prisão preventiva”. (grifou-se)(ob. cit. p. 152)

Compulsando os depoimentos dos familiares na fase administrativa, constata-se, em uníssono, que o Peticionário é usuário de drogas; xxxxx asseverou que “tem conhecimento que seu irmão é usuário de drogas e acredita que ele tenha tido um surto”(fl. xx); xxxxx, por sua vez, afirmou que “tem conhecimento que seu irmão é usuário de drogas e acredita que ele tenha feito uso, pelo descontrole que apresentava (fl.x)

Desse modo, constata-se que o Peticionário, em momento de desatinação causado pelo uso de drogas e ciúmes, se descontrolou; de costume não é violento, ao passo que sua segregação cautelar revela-se, data venia, desproporcional. Afasta-se, nesse passo, a garantia da ordem pública que fundamentou a custódia cautelar do Peticionário.

Prescreve o artigo 310 do CPP, com redação dada pela Lei 12.403, que ao receber o APF, o juiz deverá, fundamentadamente, converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos do art. 312 “e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão” (inc. II do art. 310 do CPP).

A substituição da medida extrema, que é a prisão preventiva, por medida cautelar de comparecimento periódico em juízo é perfeitamente cabível à espécie, visto que o Peticionário não frustrará a persecução penal. Ademais, a simples menção à garantia da ordem pública, contida no art. 312 do CPP, não enseja, permissa venia, a decretação da custódia cautelar.

Acerca da garantia da ordem pública como fundamento da prisão preventiva, colhe-se a seguinte crítica doutrinária, in verbis: “Não se desconsidera doutrina criticando a ordem pública como fundamento da prisão preventiva, argumentando, em resumo, tratar-se de expressão porosa, indeterminada, ambígua, nada clara, campo fértil para arbitrariedades. Roberto Delmanto Júnior assim se manifesta: ‘(...) não há como negar que a decretação de prisão preventiva com fundamento de que o acusado poderá cometer novos delitos baseia-se, sobretudo, em dupla presunção de culpabilidade: a primeira, de que o imputado realmente cometeu um delito; a segunda, de que, em liberdade e sujeito aos mesmos estímulos, praticará outro crime ou, ainda, envidará esforços para consumar o delito tentado (...)’” (ob. cit. p. 144/45)

A Jurisprudência do STF, intérprete máximo da Carta Magna, segue o mesmo norte; para ilustrar: “(...) A prisão cautelar não pode apoiar-se em juízos meramente conjecturais. A mera suposição, fundada em simples conjecturas, não pode autorizar a decretação da prisão cautelar de qualquer pessoa. A decisão que ordena a privação da liberdade não se legitima quando desacompanhada de fatos concretos que lhe justifiquem a necessidade, não podendo apoiar-se, por isso mesmo, na avaliação puramente subjetiva do magistrado de que a pessoa investigada ou processada, se em liberdade, poderá delinqüir, ou interferir na instrução probatória, ou evadir-se do distrito de culpa, ou, então, prevalecer-se de sua particular condição social, funcional ou econômico-financeira. Presunções arbitrárias, construídas a partir de juízos meramente conjecturais, porque formuladas a margem do sistema jurídico, não podem prevalecer sobre o princípio da liberdade, cuja precedência constitucional lhe confere posição eminente no domínio do processo penal. Ausência de demonstração, no caso, da necessidade concreta de manter-se a prisão em flagrante do paciente. Sem que caracterize situação de real necessidade, não se legitima a privação cautelar da liberdade individual do indiciado ou do réu. Ausentes razões de necessidade, revela-se incabível, ante a sua excepcionalidade, a decretação ou a subsistência da prisão cautelar. (...)”. (grifou-se) (STF, HC 98821/CE, Rel. Min. Celso de Mello, DJe, 16.04.2010).

“(...) Esta nossa Corte entende que a simples alusão à gravidade do delito ou a expressões de mero apelo retórico não valida a ordem de prisão cautelar. Isso porque o juízo de que determinada pessoa encarna verdadeiro risco à coletividade só é de ser feito com base no quadro fático da causa e, nele, fundamentado o respectivo decreto de prisão cautelar. Sem o que não se demonstra o necessário vínculo operacional entre a necessidade do confinamento cautelar do acusado e o efetivo acautelamento do meio social. 4. Ordem concedida”. (STF, HC 101705/BA, Rel. Min. Ayres Britto, DJe, 03.09.2010).

Mister salientar que a imposição das medidas cautelares de comparecimento periódico em juízo (art. 319, I, do CPP) ou proibição de manter contato com pessoa determinada (art. 319, III, do CPP), substitutivas da prisão cautelar, vincularia o Peticionário ao processo, evitando que frustre o andamento processual.

III – REQUERIMENTOS

Diante do exposto, tendo em vista o Princípio constitucional da presunção de inocência e o cabimento de medidas cautelares menos gravosas que a prisão preventiva, requer-se: i – o deferimento da liberdade provisória do Peticionário cumulada com as medidas cautelares prevista no inciso I ou III, do art. 319 do CPP, tudo por ser medida da mais pura e lídima

J U S T I Ç A!!

Florianópolis, x de xxxxx de xxxx.

Rafael Silva de Faria, Advogado. OAB/SC 30.044

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Streck no Conjur - Fetiche da lei...

Fetiche da lei, cidadania terceirizada

Por Lenio Luiz Streck


Em As Aventuras de Gulliver, Jonatah Swift apresenta um interessante problema acerca do que seja o fetiche da lei, quando o personagem “gigante” se depara com uma curiosa guerra travada entre dois reinos que fazem parte de uma espécie de “federação” (Blefuscu e Lilliput). Os dois povos estavam lutando já há muitos anos, tudo porque o filho do Rei de então, ao quebrar um ovo pela manhã, fê-lo pelo lado mais duro, ferindo-se no dedo. Em decorrência, o Rei editou um decreto (espécie de medida provisória – minha licença poética) determinando que, a partir daquele dia, todos “deveriam quebrar os ovos pelo lado mais delgado”. Isso gerou uma controvérsia e posterior revolta. Centenas de livros foram escritos, sustentando teses opostas. Dizem que até uma súmula vinculante foi feita! Até que veio a guerra, com dezenas de milhares de mortos. Gulliver, então, indaga: e o que diz a Constituição (ele, por certo, estudara controle de constitucionalidade em terrae brasilis ou adjacências)? E o rei responde: a Constituição é clara: “todos os fiéis quebrarão os ovos pela extremidade mais cômoda”. E então?

Eis o fetiche da lei. Interpretamos a lei como os liliputianos. E, depois, guerreamos. Apostamos tudo na “lei”. Como se a lei fosse uma coisa e nela estivesse o seu conteúdo substancial, objetificado. Um cachorro ladra. E lá vai a vizinha ao Juizado Especial exigir a aplicação da Lei das Contravenções Penais. Que não foi recepcionada pela Constituição. Aliás, o porteiro do STF deveria declará-la não-recepcionada. Ela é da década de 40 do século passado e pretendia controlar os comportamentos sociais. No entanto, continua aí. Ontologizada. E assim por diante. O Código Penal, fosse filtrado hermeneuticamente, viraria pó em grande parte. Graças a esse atraso, a desproporcionalidade das penas é de chorar. Furto qualificado e lavagem de dinheiro: penas quase iguais. Com a diferença de que temos milhares de pobres patuleus presos por furto qualificado e nenhum por lavagem...! Por suposto que sempre há um não-dito nessa história. A lei não tem um sentido em-sí. Mesmo que não existisse essa desproporcionalidade, ainda assim restaria o problema da aplicação, dependente de um intrincado jogo discursivo, que esconde as relações de poder (que, por vezes, chamamos de “teoria do bem jurídico”)...! Cada época tem a sua teoria do bem jurídico. O Código do Império foi feito para pegar escravos; o de 1890, para pegar ex-escravos... e assim por diante.

Sigamos. Terceirizamos a cidadania. Os vereadores, ao invés de fazerem política, correm ao gabinete do Ministério Público (e agora da Defensoria Pública). Em uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, o primeiro ato do defensor público foi ingressar com ação contra o Poder Público, para compeli-lo a comprar um ônibus para o transporte das crianças no interior do município. Louvável a atitude, pois não? Sim e não. Mas o que fizeram ou fazem os vereadores, o Prefeito e os secretários? Quem governa o município é a troica Juiz, Promotor e Defensor (este chegado recentemente, para aumentar o ativismo judicial)? Em uma Capital do Nordeste, a Defensoria pretendeu a construção de milhares de casas pela Prefeitura... imediatamente. Sob pena de multa! Poderia ser “sob pena de chicoteamento do alcaide municipal”.

Crimes de corrupção, etc. E o que fazem os deputados? Uma CPI? Não. Correm ao Gabinete do Ministério Público. E tiram fotografias, entregando o documento com as “contundentes denúncias”.

É o fetiche da lei. Gostamos que alguém nos determine algo. Perdemos a capacidade de organização. E, com isso, a capacidade de indignação (com todos os problemas de anemia significativa que essa palavra possui). Os governos, ao invés de fazerem políticas públicas de saúde, visando a atender a população como um todo, “resolvem” tudo pelo modo mais simples: fornecem um advogado para o utente entrar em juízo. “Não te dou saúde; dou-te um advogado”. Assim, o Poder Executivo atende apenas aqueles que conseguem as liminares em juízo. E, assim, vai levando com a barriga.

As grandes companhias (telefônicas, etc) confiam em uma espécie de “cidadania atuarial”: atendem mal, mas mal mesmo, ao máximo de pessoas e apostam em um cálculo de custo e benefício... Não mais que 5% entram em juízo. Destes, alguns desistirão. Além disso, quem quiser reclamar deve enfrentar as filas dos Juizados Especiais. E o mal humor dos juízes leigos. E dos togados. E dos meirinhos, que parecem donos do fórum. E um sujeito gritando: quem quer conciliar, fique à direita; quem não quiser, à esquerda. Parênteses: como seria uma crônica à la Machado de Assis sobre “uma tarde nos Juizados Especiais”?

Sim, fetiche da lei. Um Procurador da República ingressa com ação para retirar o Dicionário Houaiss, por causa do verbete “cigano”. O dicionário teria tecido “comentários” politicamente incorretos. Acho que ele acredita que a palavra “cigano” tem uma essência de “ciganidade” (como a ranidade da rã em Aristóteles). Expungindo o verbete, resolve-se o problema. Já li isso em algum lugar... Lembrei: 1984, de George Orwel. É a Novilíngia. O Ministério da Guerra era chamado de Ministério do Amor... O da Fome se chamava Ministério da Fartura...! Assim os juristas atribuem sentidos às leis... Dá-se o nome que se quiser. Depois ocorre a ontologização. E, pronto: a realidade estará “transformada”. Do fetiche se passa à reificação. Idéias (ou palavras) são transformadas em coisas (Verdinglichung). Também podemos denominar esse fenômeno de objetificação (Versachlichung). Parte da comunidade jurídica e´, por assim dizer, “ontológica” (mormente no sentido vulgar). Acreditam que há essências. Com isso, coisa julgada parece ser uma “senhora forte”; litisconsorte ativo parece ser um sujeito magro... Primeiro “criamos coisas”, para, depois, delas retirar a essência, com o que extraímos o sentido. Por vezes, chamamos a isso de natureza jurídica. Ou “conceito ontológico” mesmo. Por isso se pensa que, alterando a palavra, fiat lux: tudo está solucionado.

O fetiche do ativismo... Em prisões brasileiras, juízes deferem (ou poderão deferir) 3 dias de remição de pena por cada livro lido. Fundamento legal? E precisa? Projeto da Secretaria de Justiça do Paraná. Alguém pensaria que deve haver uma autorização legislativa para tal. Afinal, em uma democracia, o parlamento faz as leis. Consta que o fulcro legal estaria na LEP (7210/84), recentemente alterada pela Lei 12.433/2011. Tal lei incluiu o §2° ao art. 126 da LEP que passou a permitir que “As atividades de estudo a que se refere o § 1o deste artigo poderão ser desenvolvidas de forma presencial ou por metodologia de ensino a distância e deverão ser certificadas pelas autoridades educacionais competentes dos cursos frequentados”. Ler livros e fazer fichas de leitura estariam dentro das possibilidades semânticas destacadas pela Lei? Isso é “ensino à distância”? E quem corrige a ficha? E o que é uma “ficha”? O que é uma “resenha”? Juiz seria “autoridade educacional”? Os presos serão avaliados? Notas de um a dez? Nota sete passa sem exame? E quais os livros passíveis de enquadramento? Somente aqueles que o estabelecimento prisional oferecer? O Pequeno Principe pode? Paulo Coelho é legal? Dizem que Fernandinho Beira Mar é um voraz leitor. O que quero dizer é que, se de um lado há o caráter fetichista da lei, de outro, nem os assim denominados “limites semânticos” (uso essa expressão para além das teorias analíticas da linguagem) “seguram” os sentidos. Não parece que a LEP permita esses “movimentos”. Entretanto, faz-se a interpretação que se quer. Dá-se aos textos os sentidos pragmaticistas que mais convierem ao intérprete. Como fez a “Juíza” Pórcia, em O Mercador de Veneza. Aliás, se os presos têm direito a receber livros e, ainda por cima, receber prêmio pela leitura, as demais pessoas também terão acesso a esses livros? Aviso: antes que alguém caia de pau nisso que estou dizendo e me chame de reacionário, deixo claro que parece óbvio que é melhor os presos lerem do que ficarem no ócio. Literatura sempre faz bem. Entretanto, cada atitude voluntarista desse naipe tem efeitos colaterais. Além de não ter amparo legal. Se é que isso importa.

Fetiche das palavras... O diário oficial publicou, em 2009, que um acampamento de sem-terras passou a se chamar “Deputado Adão Pretto”. Depois, veio a “retificação”: o correto seria “Adão Negro”. Que coisa, não? Esqueceram que Pretto era o sobrenome... Esse “imaginário ONG” já está enchendo a paciência. Sobre ele escreverei na semana que vem.

Fetiche da “linguagem cênica”... No Rio Grande do Sul, a Associação que congrega Lésbicas ingressa com pedido para a retirada dos crucifixos dos prédios públicos (parece que, no caso, só do judiciário). Sem entrar no mérito neste momento acerca se devemos retirar tais símbolos, a pergunta que se põe é: e o Judiciário decide isso assim, de chofre? Sem ouvir ninguém? Quem sabe um pequeno exame da legitimidade? Essa Associação representa a população? Mais um sintoma dessa fetichização que nos persegue desde a Lei da Boa Razão baixada por Pombal lá no século XVIII.

Império da semântica... Sim, talvez por isso o Código de Águas diga que “águas subterrâneas são as que correm por debaixo da terra”... Aliás, a Constituição diz que “são bens da União aqueles que lhe pertencem”. Show de semântica. De todo modo, estão “justificados”, assim, aqueles que fazem “doutrina” no direito, quando sustentam que “agressão atual é a que está acontecendo” e “iminente é a que está por acontecer”... E que “coisa alheia” no furto é “aquela que não pertence a pessoa... Ou, melhor ainda: “escalada é subir em alguma coisa”. Por isso o sucesso dos gêmeos xifópagos em concursos públicos. E dos pretendentes a se transformarem em lagartos (não esqueçamos, jamais, da questão n. 10 do Concurso da Defensoria Pública-RJ de 2010). Tudo indica que aqueles que escrevem livros “descomplicados” acreditam mesmo que o direito e a faticidade se “descomplicam” com um simples toque de “Midas semântico”. Algo como “a concepção realista das palavras”. Palavras como “simplificação” ou “descomplicação” devem ter uma substância “descomplicadora”. De todo modo, a julgar pelo que se transformou o ensino jurídico e o modo como se produzem as decisões, de fato parece que eles têm razão. Ao menos assim parece, porque os compêndios estão ali, nas bancadas dos fóruns e tribunais. Já notaram como as grossas lombadas desses manuais nos olham de soslaio?

Há lei para tudo. Tem uma lei que regulamenta o churrasco. Logo surgirá alguém para escrever “Teoria do Churrasco Simplificado”. E um churrasco que não segue a legislação poderá ser inconstitucional. Uma portaria qualquer do Ministro da Fazenda “vale” mais do que a Lei Orgânica da Advocacia Geral da União (falo da Portaria 75, de 26 de março de 2012, pela qual o Ministro determina que os advogados públicos estão impedidos de ajuizar execuções iguais ou menores de 20 mil reais). Pergunto: por que alguém, a partir disso, pagará dívidas de até 20 mil? País rico... E, agora, descaminho de até 20 mil não será mais punido, porque será enquadrado no conceito de “insignificância”. Mais: agora temos uma discussão fantástica. Com a edição da Portaria 75, aqueles que são réus de ações de até 20 mil reais já estão pleiteando a extinção do feito. O que seria, afinal, a parametricidade constitucional? No Sri Lanka, uma Portaria vale menos do que a Constituição. Em Liliput também. Já em terrae brasilis... Lembro-me de ter lido uma discussão interessante do tempo do Império: foi baixado um decreto limitando as penas corporais a 50 chibatadas por dia. Ocorre que muitos escravos desmaiavam no segundo ou terceiro dias. Discussão hermenêutica: quando o escravo estivesse curado, as chibatadas reiniciariam do zero ou do número já chibateado? Depois de 10 anos, veio a solução “sumulada”: começa do zero. Ou seja, a suspensão era interruptiva e não suspensiva. Como acham que será resolvida a questão da Portaria 75? Com certeza, a “viúva” perderá!

Numa palavra: o fetiche da lei e o fetiche do poder nos fragiliza. Enfraquece a cidadania. Já não lutamos. Nem nos reunimos em praças. Para protestar contra a impunidade, reuniram-se não mais de dez mil pessoas. Qualquer causa religiosa ou passeata de minorias reúne trezentas mil pessoas. Administrativizamos ou terceirizamos o exercício de nossas prerrogativas. E de nossos direitos fundamentais. Acreditamos que o simples aumento de penas resolve o problema da criminalidade. E que fazendo uma lei (sempre uma lei) trocando a palavra “crack” por “pedra da morte” – como um projeto de uma importante Câmara de Vereadores – estará resolvido o problema do flagelo da drogadição. A Lavagem de Dinheiro é crime. Faz 13 anos. Só que desde lá (1998) foram condenados apenas 17 pessoas. Furto e estelionato também... só que, neste mesmo período, mais de cem mil pessoas foram condenadas por esses delitos. E então? Onde está o problema? Uma tradição patrimonialista nos prende ao passado. Mas isso não explica tudo. E, por isso, há assunto para outras colunas.

Fetiche da lei, fetiche das palavras... A linguagem não é uma terceira coisa entre um sujeito e um objeto. Ela é condição de possibilidade. Logo, ela não é mero instrumento. Ela não está à minha (ou nossa) disposição (Ge-stel). Do mesmo modo, o direito não pode ser visto como uma mera racionalidade instrumental. Não é uma mera técnica. Para aqueles que tem a crença de que, trocando as palavras se trocam as coisas, lembro que a palavra “bomba” não explode. Pode ser apenas uma “notícia forte”, bombástica. Na rosa não está o seu perfume, para usar um exemplo antigo. Não precisamos falar, neste pequeno espaço, dos usos sociais da linguagem, etc. Apenas quero dizer que não podemos dar às palavras o sentido que queremos e tampouco podemos pensar que, trocando-se os nomes, as coisas mudam (pelo menos da noite para o dia). Não adianta querer erradicar a febre amarela por decreto, como queria Papa Doc, no Haiti (antes que alguém reclame, sei, sim, da importância da lei; aprendi isso lendo Senhores e Caçadores, de Edward Thompson, que dizia: a lei importa e por isso nos importamos com isso tudo). É isso. Os liliputeanos guerrearam durante anos, até a chegada de Gulliver. E a “Constituição” deles era muito clara, pois não? Claríssima...!

Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito.

Revista Consultor Jurídico, 5 de abril de 2012

terça-feira, 3 de abril de 2012

Reincidência e princípio da insignificância - site STJ

DECISÃO
Sexta Turma aplica princípio da insignificância a reincidente que tentou furtar mamadeiras
A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) absolveu uma mulher que havia sido condenada a oito meses e 20 dias de reclusão em regime fechado, por tentar furtar de um supermercado artigos para cuidados de criança. Os ministros consideraram o fato atípico, por ser minimamente ofensivo.

A mulher, reincidente, havia tentado furtar uma chupeta com prendedor, duas mamadeiras, um condicionador e dois kits de xampu e condicionador para criança. Os produtos foram avaliados em R$ 78,93. Antes de conseguir levar os itens, ela foi detida por seguranças.

O ministro Og Fernandes, relator do habeas corpus impetrado em favor da condenada, afirmou que, no caso, “não há como deixar de reconhecer a mínima ofensividade do comportamento”, e votou pela absolvição da mulher.

Antecedentes e reincidência

O relator ressaltou que a existência de maus antecedentes, reincidência ou ações penais em curso não impede a aplicação do princípio da insignificância – entendimento este consolidado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e do STJ.

A Sexta Turma, de forma unânime, aplicou o princípio da insignificância e concedeu a ordem de habeas corpus. Porém, o ministro Sebastião Reis Júnior ressalvou o seu ponto de vista. Para ele, a reincidência impediria o reconhecimento da insignificância.