quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Barril de pólvora - Rebelião em Cascavel PR - FSP

Rebelião no Paraná termina com 5 presos mortos e 7 desaparecidos

Motim em penitenciária de Cascavel teve dois detentos decapitados; o local ficou destruído
Cerca de 800 foram transferidos; segundo a defensoria, os não localizados podem ter morrido ou fugido
DE CURITIBACOLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM CASCAVEL (PR)DE SÃO PAULO
Após 45 horas, acabou na madrugada desta terça (26) a rebelião na Penitenciária Estadual de Cascavel (PR), com 5 mortos --2 decapitados-- e ao menos 25 feridos. Sete são considerados desaparecidos.
Com cerca de mil presos, o presídio é um dos maiores do Paraná, mas não estava superlotado. Foi a pior rebelião no Estado em quatro anos.
Dois agentes penitenciários foram feitos reféns. No domingo, os amotinados jogaram presos do alto do prédio. Três morreram na queda.
Do telhado, a cabeça de um dos decapitados era exibida.
O motim só acabou após negociações para a transferência de presos.
"Foi uma violência incontrolável e preocupante", afirma o diretor do Depen (Departamento Penitenciário do Estado), Cezinando Paredes.
Segundo Juliano Murbach, presidente da OAB em Cascavel, o motim não teve um fato motivador nem reivindicações específicas. "Eram coisas genéricas, como qualidade da comida, atendimento, violência. São reivindicações que escutamos faz tempo."
A penitenciária tem um histórico de agressões. Apenas neste ano, oito sindicâncias a respeito foram abertas.
Alguns rebelados disseram ser do PCC (Primeiro Comando da Capital), facção criminosa paulista, mas nenhum afirmou que a rebelião ocorreu por ordem da quadrilha.
O Depen diz que os fatos estão sendo investigados. O Estado pedirá à Justiça que promova um mutirão para liberar quem tem direito a progressão de pena e estuda um reforço na segurança.
Com o fim da rebelião, 800 dos 1.038 presos foram transferidos a outras penitenciárias. O local ficou destruído.
A Defensoria Pública diz que há sete presos desaparecidos, que podem ter fugido ou morrido. Só se poderá confirmar o que houve após a vistoria, que deve levar dez dias.
O motim expôs problemas presentes em outras unidades do Paraná: a capacidade do presídio foi "inflada" com mais camas sem aumento do espaço. O Depen diz que não houve prejuízo à segurança.

domingo, 17 de agosto de 2014

Juan Pablo Villalobos

 A 'Ilustríssima' publicou texto do escritor mexicano Juan Pablo Villalobos. Foi escrito para comemoração dos 100 anos do Palácio da Paz, em Haia. Excelente!

Prezada dona Justiça,

JUAN PABLO VILLALOBOSTRADUÇÃO SÉRGIO MOLINA
Praças e Tribunais de Justiça do Brasil e muitos outros lugares do mundo --menos minha cidade natal.
Antes de mais nada, dona Justiça, devo confessar que, lá onde nasci, a senhora era figura rara. Não me interprete mal, por favor, não estou insinuando que na minha cidade ou no meu país falte justiça --o que de fato acontece, mas não vamos antecipar as coisas. Eu simplesmente queria começar contando que na minha cidade não se via --e, até onde eu sei, não se vê-- sua figura em locais públicos. Vasculhei minuciosamente minha memória --incluindo as lembranças inventadas-- e juro que não consegui localizar uma escultura, uma pintura ou pelo menos um grafite onde a senhora aparecesse. Estranho, não é? O mais provável é que sua ausência tenha uma explicação sem graça, que se deva a motivos burocráticos, quer dizer, ao fato de a administração da Justiça ser centralizada. Minha cidade não é capital do Estado, não é capital de coisa nenhuma. Ergo: não tem nenhum órgão próprio de Justiça, o que nos condena à ausência do prédio de um tribunal, que teria na entrada e à vista de todos aquela sua figura de olhos vendados, com seu par de pratinhos na mão direita e a espada na esquerda.
Se não me falha a memória --depois de muito puxar por ela, tanto que talvez a misture com a imaginação-- a primeira imagem da senhora que vi na vida foi na televisão. Deve ter sido num filme de advogado ou num desenho de super-heróis. A senhora percebe, dona Justiça? Em nenhum dos casos se trataria de um produto de ficção nacional, os dois são ficções importadas dos Estados Unidos. Volto a lhe pedir que não me interprete mal, não há segundas intenções na minha afirmação --não estou dizendo que a Justiça no meu país seja importada dos Estados Unidos. Só acho curioso uma pessoa que cresceu numa cidadezinha mexicana ter tido o primeiro contato com a senhora Justiça através de uma imagem produzida pela poderosíssima indústria do entretenimento do país vizinho.
A senhora notou, dona Justiça, que num espaço muito breve já lhe pedi duas vezes para não me interpretar mal? Me dá um pouco de vergonha, mas imagino que a senhora já deva estar acostumada, sendo, como é, sujeita a infinitas interpretações.
Desculpe o atrevimento, dona Justiça, mas desde que vendaram seus olhos eu sempre tenho a impressão de que a senhora foi sequestrada. Não precisa que a gente mande alguém para providenciar seu resgate?
Por outro lado, gostaria de lhe sugerir algumas mudanças na sua imagem. Não sei se a senhora costuma ver televisão --imagino que não, a não ser que tire a venda dos olhos depois do expediente--, mas agora são muito comuns uns programas que transformam a aparência das pessoas. No início mostram uma pessoa que faz questão de parecer feia. E no fim do programa essa mesma pessoa aparece linda de morrer. Sei que muita gente acha que isso é uma frivolidade --e é mesmo, quando se trata de seres humanos--, mas acontece que a senhora, dona Justiça, não é um ser humano: é pura imagem. Na minha humilde opinião, a senhora devia encurtar um pouco a saia, ser mais generosa no decote, inclinar o corpo de um jeito mais sugestivo. Numa palavra: ser mais sensual. A senhora pode imaginar? Eu posso: uma dona Justiça que provoque desejo.
E já que quebramos o gelo, gostaria também de falar sobre os pratinhos da balança que a senhora segura na mão direita. Eles me dão angústia. A interpretação mais corrente diz que esses pratinhos representam o equilíbrio entre o verdadeiro e o justo. Certo. Só que eu acho que eles transmitem uma tremenda fragilidade, como se esse equilíbrio, na prática, fosse impossível. É um problema gravíssimo, que põe em risco sua credibilidade e a confiança dos seres humanos! Não sei se a senhora está a par do espírito da nossa época. Deixe eu lhe dizer uma coisa: já não restam muitos idealistas, a maioria deles se bandeou para o time dos pragmáticos. E o que um pragmático pode pensar vendo a senhora de olhos vendados segurando dois pratinhos numa mão e uma pesada espada na outra? "Impossível!", é o que ele vai pensar, que é impossível haver justiça.
Por último, mas nem por isso menos importante, queria lhe falar da espada, símbolo do poder da razão e da justiça. Hoje em dia já não gostamos muito de armas, sabe? Quer dizer, muita gente gosta delas e as usa, mas digamos que nossas sociedades não têm uma boa imagem das armas nem das pessoas que gostam delas e as usam. Sugiro duas alternativas. Se a senhora faz mesmo questão de continuar sendo idealista --coisa que eu aplaudo--, é melhor trocar a espada por um livro ou por uma folha de papel que simbolize nossas leis. Se, ao contrário, a senhora quer convencer os pragmáticos com um elemento dissuasivo --o que também não seria má ideia, dada a situação do mundo--, seria melhor esquecer a espada e comprar logo uma arma de fogo. Uma pistola. Uma escopeta. Melhor ainda! Uma Uzi, um AK-47!
Pode ser que a esta altura, cara dona Justiça, a senhora esteja escandalizada. Se for assim, peço que me desculpe. Minha imaginação foi condicionada pelo fato de não ter crescido perto de uma imagem sua. A senhora provoca em mim uma terrível saudade, a mesma que sentem os amantes separados por milhares de quilômetros. Acredite que o que me move é o mais puro amor por tudo que a senhora representa.
Sempre seu,
Juan Pablo Villalobos

sábado, 16 de agosto de 2014

Damásio na Carta Forense - Diarréia legislativa

LEGISLAÇÃOComo não fazer leis



Um dia, minha mãe contratou uma doméstica que residia numa fazenda. Eu reclamei que a funcionária fazia tudo errado. Ela me respondeu:
– Filho, eu não a posso dispensar. Preciso dela, pois trabalho fora a maior parte do dia. Ela pouco sabe das coisas porque sempre viveu na fazenda. Eu a estou ensinando. Com o tempo, ela vai melhorar.
Nunca esqueci do que minha mãe me disse, arrematando a conversa:
– Coitada, filho, agora, enquanto eu não ensino, ela faz como não sabe...

Pois é. O Congresso Nacional brasileiro faz lei como não sabe. É inacreditável que, tendo que fiscalizar o orçamento e fazer leis, não faz bem nem um nem outro. De uns tempos para cá, talvez uns quinze anos, as leis brasileiras são feitas de qualquer jeito. Que leis? As penais? Não, todas, sejam penais ou extrapenais. Sempre pergunto aos meus professores: Há leis novas? Se a resposta é positiva, lá vem barbaridade! Mais sofrimento para desvendar o que pretenderam dizer.

Na legislação ambiental, já editaram uma lei definindo crime sem pena, pena sem crime e capítulo de crimes sem crimes e sem penas.

Recentemente, publicaram uma causa de aumento de pena sem o mínimo (“até a metade”), permitindo que o juiz aplique o acréscimo de uma dia de prisão.

Mais recentemente ainda, na Lei n. 13.008, de 26 de junho de 2014, alterando o art. 334 do Código Penal, que tratava do contrabando e descaminho, esqueceram-se de que o funcionário público, quando facilita a prática desses crimes, responde pelo delito do art. 318 do estatuto penal e não pelo art. 334.

O princípio da legalidade não existe para o legislador. Há leis incriminadoras superpostas, ninguém sabendo o que vale e o que não vale. Dificilmente dizem o que é revogado. Certa vez, telefonou-me um delegado de polícia indagando quais eram as normas incriminadoras sobre a falsificação de produtos. Fui estudar e verifiquei que havia nada menos do que três artigos diferentes descrevendo o mesmo fato: no Código Penal, na lei crimes contra a economia popular e no Código de Defesa do Consumidor.

Mas o pior está na Lei n. 12.971, de 9 de maio de 2014, a denominada Lei do Racha. Apresenta erros crassos e falta de coerência. Em dezenas de anos estudando a legislação penal, nunca encontrei lei pior que esta. Deve ser, considerando todos os tempos, a pior lei do mundo.

E não foi por falta de aviso. Na discussão do projeto da nova lei, os deputados federais Sandra Rosado e Fabio Trad alertaram o relator, senador Ítalo do Rego, do erro do § 2o do art. 302 do texto. Mas nada foi feito para reparar o erro.

Desconhecendo o que determina o § 2o do art. 8o da Lei Complementar n. 95, de 1998, o beabá da elaboração de leis, o legislador, ao fixar o período da vacatio legis, não seguiu a regra legal, dispondo: esta lei entrará em vigor “no 1o(primeiro) dia do 6o (sexto) mês após a sua publicação”, que se dará no dia 1o de novembro deste ano de 2014. Deveria ter dito: esta lei entrará em vigor no dia 1o de novembro de 2014.

Anotando que a lei nova pretendeu tornar mais graves as punições penais do Código de Trânsito, reduzindo com isso o número de mortes em nossas vias, que superam hoje 40 mil por ano (uma hecatombe), verifica-se que, de acordo com o art. 306, que trata da embriaguez ao volante, dirigir com a capacidade psicomotora alterada conduz a uma pena de detenção, de 6 meses a 3 anos; dirigir com a capacidade psicomotora alterada, resultando morte, infringe o § 2o do art. 302, sujeitando o motorista à pena de detenção, de 2 a 4 anos. Sendo a mesma conduta nos dois casos, a desproporção entre as duas cominações de pena é flagrante.

Analisando a lei nova, verifica-se que há colisão entre o novo § 2o do art. 302 do CT, que trata do homicídio culposo advindo de racha, e o racha com resultado morte (art. 308, § 2o). No crime de homicídio culposo resultante de racha ocorrido em “via”, em que o sujeito não precisa ser o motorista, a pena, diante da lei nova, é de 2 a 4 anos de reclusão; no racha com morte cometido em “via pública”, no qual o sujeito “participa” da corrida ou disputa, a pena é de 5 a 10 anos de reclusão. O mesmo fato com penas diferentes.

O § 2o do art. 302 descreve um crime autônomo ou contém circunstâncias qualificadoras do homicídio culposo? Tratando-se de circunstâncias e não de crime autônomo, deveria referir-se expressamente ao homicídio culposo, como o Código Penal faz nesses casos. Não mencionando expressamente o homicídio culposo, mais parece um delito autônomo.

No homicídio culposo, as causas de aumento de pena do art. 302, § 1o , inserindo-se entre o caput e o § 2o,, não permitem que sejam aplicadas ao fato do próprio § 2o. Assim, só podem incidir sobre o homicídio culposo “simples” (art. 302, caput).

No inciso III do § 1o do art. 302, agrava-se a pena se o sujeito comete omissão de socorro à vítima do “acidente”, diz o tipo. Ora, se a morte foi “acidental” não há nexo de causalidade, excluindo-se o resultado.

caput do art. 302 comina a mesma pena do seu  § 2o!

No art. 308, §§ 1o e 2o, que tratam, respectivamente, do racha com lesão corporal grave e morte, para afastar o dolo direto e o eventual, o legislador determina uma condição: “se as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo”.

Inacreditável! Eu nunca vi um tipo qualificado pelo resultado no qual a figura, expressamente, afastasse o dolo direto e o eventual, só permitindo a adequação no caso de culpa. Ora, se o sujeito agiu com dolo em relação ao resultado, deve responder por outro delito mais grave, e não pelo tipo preterdoloso.

De todo o visto, se alguém, com tantos anos de estudo de leis penais, tem dificuldade em entendê-las, que dizer dos destinatários das normas penais?
Convém que a Lei n. 12.971/2014 seja revogada. Ainda dá tempo.