quinta-feira, 31 de julho de 2014

Conjur - Retrospecto de JB no STF

Joaquim Barbosa será lembrado 
pelo que é, não pelo que fez


O ministro Joaquim Benedito Barbosa que despediu-se do Supremo Tribunal Federal e do Judiciário nesta quinta-feira (31/7), vai deixar saudades, para o bem e para o mal. Barbosa dedicou 41 anos de sua vida ao serviço público e decidiu abandonar o mais honroso posto da magistratura 13 anos antes do prazo estabelecido por lei.
Antes de atravessar os umbrais da mais alta corte do país como ministro, foi funcionário da gráfica do Senado, oficial de chancelaria do Itamaraty, advogado do Serpro, o serviço de informática do governo federal, e procurador do Ministério Público Federal. Durante todo esse período brilhou mais por suas graduações e pós-graduações acadêmicas em cursos na Finlândia, Inglaterra, Estados Unidos, França, Áustria e Alemanha do que por sua atuação nos órgãos públicos.
Os 11 anos que passou no Supremo Tribunal Federal, igualmente, ficaram mais marcados pelos traços de sua personalidade do que pela sua produção jurisdicional. Esta peculiaridade ficou ainda mais realçada quando presidiu a corte, por um ano e sete meses.
O ministro do STF Luis Roberto Barroso, ao fazer a retrospectiva de 2013para esta revista eletrônica Consultor Jurídico, elencou as grandes causas julgadas pela corte no ano em que Barbosa esteve na presidência:
“Neste ano de 2013, o tribunal, entre outras decisões emblemáticas: (i) admitiu os embargos infringentes na AP 470; (ii) deliberou sobre a perda do mandato parlamentar em razão de condenação criminal transitada em julgado; (iii) pronunciou-se sobre o devido processo legal legislativo em matéria de veto, criação de novos partidos e demarcação de terras indígenas; (iv) suspendeu liminarmente a criação de quatro novos tribunais regionais federais; (v) impediu cautelarmente a mudança das regras de repartição dos royalties do petróleo; (vi) iniciou a modulação dos efeitos das normas sobre precatórios, declaradas inconstitucionais; (vii) impôs o compartilhamento entre Estados e Municípios das competências relacionadas ao saneamento básico; (viii) declarou inconstitucional a reintrodução do voto impresso; (ix) considerou válida a introdução de um prazo de decadência para revisão dos benefícios previdenciários; e (x) definiu o alcance restrito das condicionantes impostas na demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol”.
A retrospectiva feita por Barroso pode ser vista como o balanço da atuação de Joaquim Barbosa como presidente do Supremo. O ministro, porém, foi alçado à condição de celebridade não só do mundo jurídico mas também — ou principalmente — das colunas e redes sociais, por sua atuação como relator da Ação Penal 470, mais conhecida como o processo do mensalão. Ação originária do Supremo em função do foro especial de que gozavam alguns poucos réus da causa, o processo era por si de limitada repercussão jurídica, mas de forte impacto político. Joaquim Barbosa soube capitalizar a onda moralizante anticorrupção que envolveu toda a sociedade brasileira no caso e conseguiu um julgamento no chamado “prazo razoável” estipulado pela Constituição e, ainda por cima, obteve a condenação da maioria dos réus — já, a esta altura, amplamente condenada pela mídia e pela opinião pública.  
Além de ter seu ponto de vista quase sempre seguido pela maioria dos colegas durante o julgamento da AP 470, Barbosa ganhou em popularidade e chegou a ser apontado como um possível candidato a presidente da República. Mas encerrou sua participação no processo com duas derrotas que podem ser consideradas pessoais e que podem também ter apressado sua decisão de antecipar a aposentadoria. A primeira delas foi quando os ministros do Supremo, por maioria, admitiram a possibilidade de Embargos Infringentes para os réus da AP 470 condenados por maioria de votos, mas que tiveram pelo menos quatro votos contrários à condenação. A segunda, já em 2014, quando o Supremo rejeitou a tese defendida por ele de que condenados com direito ao regime semiaberto só teriam direito a trabalhar fora do presídio depois de cumprir um sexto da pena.
Quando do julgamento dos primeiros embargos infringentes, em que a corte rejeitou a denúncia de formação de quadrilha contra o ex-ministro José Dirceu e outros seis condenados do processo do mensalão, Joaquim Barbosa, inconformado com a derrota, afirmou que aquela era uma “tarde triste” para o Supremo. “Com argumentos pífios foi reformada, foi jogada por terra, extirpada do mundo jurídico, uma decisão plenária sólida e extremamente bem fundamentada.” A fez um alerta: “Sinto-me autorizado a alertar a nação brasileira que esse é apenas o primeiro passo”.
Primeiro negro a ser presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa nunca se conformou com o fato de ter chegado ao topo da carreira no Judiciário beneficiado por uma espécie de cota racial. Embora preencha todos os requisitos constitucionais para preencher o cargo, muito especialmente o “notório saber jurídico” de que fala a Constituição, é também notório que ao escolhê-lo para ocupar a vaga do constituionalista José Carlos Moreira Alves, o presidente Luis Inácio Lula da Silva tinha a intenção manifesta de colocar um negro no Supremo, da mesma forma que Fernando Henrique fez de Ellen Gracie ministra para contemplar a "cota das mulheres". Só que Joaquim Barbosa sempre considerou esse detalhe um demérito. "Dizer que eu entrei numa cota é uma manifestação racista. Por quê? Porque simplesmente, as pessoas que fazem isso deixam de lado, não olham meu currículo. Aliás, pouca gente olha meu currículo", afirmou em entrevista ao jornalista Roberto d'Ávila, da Globo News.
Além da Ação Penal 470, a passagem de Joaquim Barbosa pelo Supremo será sempre lembrada pela relação conflituosa que manteve com a maioria de seus colegas. Em 2004, Joaquim Barbosa chegou a chamar o ministro Marco Aurélio “para resolver a questão fora do tribunal”. Foi o primeiro de vários confrontos entre ambos. Outro desafeto antigo foi o ministro Gilmar Mendes: "Quando se dirigir a mim, não pense que está falando com seus capangas de Mato Grosso”, apelou Barbosa, referindo-se ao estado natal de Gilmar. Durante o Julgamento da AP 470, as rusgas com o ministro Ricardo Lewandowski, revisor da ação, foram frequentes e as discussões acaloradas quase sempre descambavam para a ofensa pessoal. Uma de suas últimas investidas foi contra o ministro Roberto Barroso. Barbosa levantou-se contra o voto de Barroso pela redução de pena de alguns condenados, acusando-o de “fazer discurso político” e de “contribuir para a impunidade”. 
Desde que assumiu a presidência do Supremo, revelou-se um crítico feroz da instituição que o cargo que ocupava colocou sob seu comando. Em seu discurso de posse fez uma manifestação de desejo que pode ser entendida, por oposição, como um diagnóstico do Juciário: "Gastam-se bilhões de reais anualmente para que tenyhamos um bom funcionamento da máquina judiciária, porém, é importantne que se diga: o Judiciário a que aspiramos é um Judiciário sem firulas, sem floreios, sem rapapés. O que buscamos é um Judiciário célere, efetivo e justo." Falando na ordem direta das coisas emendou: “É preciso ter a honestidade intelectual para reconhecer que há grande déficit de Justiça entre nós. Nem todos os cidadãos são tratados com a mesma consideração quando buscam a Justiça. O que se vê aqui e acolá é o tratamento privilegiado”.
Seu relacionamento com as bases da magistratura foi igualmente tenso. Antes de torpedear a aplicação da Lei que  criou novos tribunais federais, em reunião com os presidentes de associações de magistrados, disse que o projeto tinha sido aprovado de "maneira açodada e sorrateira", e que os novos tribunais estavam sendo instalados em resorts, à beira de alguma praia" e que seriviriam para dar emprego aos advogados.
Em sua última trombada numa sessão plenária do Supremo, quando já tinha anunciado sua aposentadoria precoce, atropelou o advogado Luiz Fernando Pacheco, que da tribuna da corte pedia que o ministro colocasse em votação o pedido de prisão domiciliar para seu cliente, o ex-presidente do PT, José Genoíno. Incomodado com a insistência do advogado, Barbosa mandou desligar o microfone e em seguida ordnou que os seguranças da corte o retirassem, à força, do recinto. Em nota, Barbosa explicou que  o advogado agiu “de modo violento” e fez “ameaças contra o chefe do Poder Judiciário”. 

domingo, 20 de julho de 2014

Morais da Rosa no Conjur

LIMITE PENAL

Duração razoável do processo sem contrapartida é como promessa de amor


As descobertas da neurociência demonstram que a maneira como aprendemos a pensar e a explicar o modo como decidimos depende de um complexo sistema de variáveis. Não se pode mais aceitar, sem maiores contestações, a ilusão do sujeito racional moderno. Tomar decisão exige impasse. Decidir é uma tarefa complexa e o cérebro, assinala Daniel Kahneman, por seus sistemas — S1 (implícito, rápido, direto, automático, emotivo e desprovido de esforço) e S2 (explícito, consciente, demorado, racional, desgastante e lógico) — busca reduzir a complexidade da decisão.
Basta lembrar da primeira vez em que dirigimos um carro. O que era uma atividade do S2 nas primeiras vezes, com o tempo, passa a ser uma atividade realizada pelo piloto automático. E dirigimos sem pensar. Ainda que os sistemas (S1 e S2) trabalhem em sequência, por sermos humanos, não se problematiza muito, justamente porque a resposta pronta está dada. Modificar exige tempo e esforço mental. No campo do processo penal esse modo de pensar leva muitas vezes a erros (vieses), dado que a reflexão não é acionada. Isso porque a atenção é cara e escassa[1].
Daí que podemos entender como a construção do estereótipo acusado (perigoso, criminoso, condenável etc.) faz com que não se dê muita importância às prisões cautelares, tidas como necessárias. Recentes dados do Conselho Nacional de Justiça mostram que já estamos no pódio mundial de presos, na sua boa parte cautelar. A absolvição de pessoas ao final do processo ou mesmo em segundo grau não é raridade. Mas, simplesmente, na lógica dos atores jurídicos, acontece. É uma externalidade negativa do sistema processual penal. Opera-se, no tocante à cautelar, munido do S1, sem esforço, na facilidade retórica da decretação da prisão.
Com Sylvio Lourenço da Silveira Filho escrevi um livro denominado Medidas compensatórias da demora jurisdicional: a efetivação do direito fundamental à duração razoável do processo penal[2], em que mostramos que a dimensão temporal é culturalmente apreendida e que varia conforme a posição subjetiva. As coordenadas fabricam sistemas de pensamento que servem racionalmente para dar sentido e diminuir a complexidade, embora não consigam expressar a dimensão pessoal do impacto do tempo. A partir da noção de perspectiva (espacial) e expectativa (temporal), vinculadas na representação racional moderna, as quais se encontram imbricadas, pode-se apontar as compreensões do tempo.
A sensação do tempo depende de diversos fatores pessoais e, por isso, não compartilhados, podendo-se apontar as variáveis da idade, gênero, profissão, ansiedade, estresse, rotina, atividade realizada, lugar de sua realização, em suma, cenário e contexto da experiência de tempo. Assim é que, para o acusado, o prolongamento do processo pode ser compreendido de maneira diversa dos jogadores processuais (Ministério Público, Defensor, Advogado, Magistrado).
A garantia da Duração Razoável do Processo, aparentemente inserida pela Emenda Constitucional 45, não se trata de novidade, dado que já discutida em diversos âmbitos, especialmente na Europa. Ademais, prevista nos documentos internacionais, embora ignorada pelo senso comum teórico(Warat). Na verdade, prometer-se a duração razoável sem medidas compensatórias é o mesmo que se prometer amor. Para além do Direito (ao amor ou à duração razoável do processo) é preciso estabelecer-se as garantias. Em ambos os casos, todavia, diante da ineficácia dos mecanismos de garantia, muitas vezes o Direito não se efetiva. A luta para que o processo possa acontecer em padrões que reduzam o sofrimento, contudo, varia conforme a posição subjetiva do ator processual.
O sofrimento experimentado pelo acusado ou pela vítima é manifestado desde seu lugar de implicado (interno). Por outro lado, tanto Ministério Público, Magistratura e Defensoria (pública ou privada), normalmente, tratam o processo singular do acusado e da vítima como sendo mais um. Apenas mais um na rotina diária de enfrentamento da avalanche processual, movido, então, pelo S1. Com a criminalização do cotidiano, das relações afetivas e do incremento dos tipos penais, cada vez mais nos arrostamos com o aumento do número de ações penais. O que pode ser um problema de gestão para alguns, externos ao processo, para os internos - acusado e vítima — a questão é de vida ou morte. E o tempo é um paradoxo. Nem muito rápido que impeça a reflexão, nem muito longo que não faça sentido. Nesse contexto, a luta pelo razoável esbarra nas motivações dos sujeitos do mundo da vida e dos sujeitos processuais. Na fusão de horizontes em que o processo é o palco, não raro a angústia autêntica é só dos diretamente envolvidos, os quais possuem a perspectiva interna, principalmente o acusado.
Logo, como apontam André Nicollit e Aury Lopes Jr., dentre outros, há uma diretriz constitucional que se integra ao patrimônio da dignidade da pessoa humana e que está para além da gestão de processos. As vidas que se escondem por detrás dos números precisam ser resgatadas. Daí a pretensão é a de reler o instituto com cuidado (Tania da Silva Pereira), tanto para os envolvidos diretamente como para os demais. E é preciso fazê-lo resgatando a origem, discussões e critérios para o enfrentamento da duração demasiada do processo, estabelecendo-se mecanismos de mensuração e compensação (dentre eles a atenuante genérica do artigo 66 do Código Penal, consoante explicamos no livro com Sylvio Lourenço). Essa é uma forma de mitigar os nefastos efeitos que um processo causa. Até porque a maioria dos acusados ocupa o lugar de Josef K, de Kafka, ou seja, não entende o que se passa, salvo que demora muito.
Nos julgamentos pelo Tribunal do Júri, o paroxismo chega ao ponto de, em muitos casos, o sujeito ser processado, com recebimento da denúncia, instrução e decisão de pronúncia, mas, em plenário, o membro do Ministério Público requerer a absolvição. A absolvição, nesse contexto, não significa direito à indenização, conforme a posição majoritária. Simplesmente se roubou o tempo da vida do sujeito, por aplicação irrefletida do S1.
Precisamos, definitivamente, falar sobre a duração razoável do processo. Isso porque se o acusado inicia a partida processual com a presunção de inocência, a demora no desfecho do processo é uma forma de tormento torturante e deve ser mitigado com medidas paliativas, sob pena de praticarmos a tortura psicológica com a demora processual. Para tanto, precisamos compreender os lugares e nos implicarmos nas posições, especialmente de garantes, para que tudo não passe de uma promessa de amor.

[1] O tema é tratado em: KAHNEMAN, Daniel. Rápido e Devagar: duas formas depensar. Trad. Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. Desenvolvi um capítulo sobre a questão em MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.
[2] MORAIS DA ROSA, Alexandre; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço. Medidas compensatórias da demora jurisdicional: a efetivação do direito fundamental à duração razoável do processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

 é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC.